segunda-feira, 10 de abril de 2017

ÉTICA, EDUCAÇÃO E CIDADANIA

ÉTICA, EDUCAÇÃO E CIDADANIA

Marconi Pequeno
A ética é a morada do homem, diziam os primeiros filósofos gregos no século VI a.C. Ética vem do grego ethos, que significa modo de ser ou caráter. Para eles, o ethos representava o lugar que abrigava os indivíduos-cidadãos, aqueles responsáveis pelos destinos da pólis (cidade). Nessa morada, os homens sentiam-se em segurança. Isso significa que, vivendo de acordo com as leis e os costumes, os indivíduos poderiam tornar a sociedade melhor e encontrar nela sua proteção, seu abrigo seguro. A ética aparece, assim, como resultado das leis determinadas pelos costumes e das virtudes e hábitos gerados pelo caráter dos indivíduos. Os costumes representam, então, o conjunto de normas e regras adquiridas por hábito, enquanto a permanência destes define a caráter virtuoso da ação do sujeito. A excelência moral seria não apenas determinada pelas leis da cidade, mas também pelas decisões pessoais que geram as virtudes e os bons hábitos. O ethos grego corresponde ao latim mos (mores), do qual deriva o termo moral. Ética e moral são palavras que significam, em sua origem, a mesma coisa, pois dizem respeito ao modo como os indivíduos devem agir em relação ao outro no espaço em que vivem.
Entretanto, hoje podemos estabelecer uma diferença entre ambas, pois a ética se constitui como uma parte da filosofia que trata da moral em geral, ou da moralidade de cada ser humano, em particular. A ética é por muitos definida como a ciência da moral. Isso significa que a moral aparece, atualmente, como um objeto de reflexão da ética. Desse modo, enquanto à ética compete estudar os elementos teóricos que nos permitem entender a moralidade do sujeito, a moral diz respeito à esfera da conduta, do agir concreto de cada um.
Pode-se resumir tais diferenças da seguinte forma: a ética revela-se como reflexão (theoria), já a moral diz respeito à ação (práxis). O mundo do ethos envolve a individualidade (subjetividade) e a coletividade (intersubjetividade) dos seres humanos dotados de sentimento (pathos) e razão (logos). Nesse sentido, a prática do bem ou da justiça estaria ligada ao respeito às leis da pólis (heteronomia) e à intenção individual (autonomia) de cada sujeito. Isso significa que existem fatores externos (a lei, os costumes) e internos (as convicções, os hábitos) que determinam o comportamento dos cidadãos. Nesse sentido, a moral, definida como um conjunto de regras, princípios e valores que determinam a conduta do indivíduo, teria sua origem nas virtudes ou ainda na obrigação de o sujeito seguir as normas que disciplinam o seu comportamento. Todavia, a boa conduta poderia também ser determinada pela educação (Paidéia), na medida em que o processo educacional forneceria as regras e ensinamentos capazes de orientar os julgamentos e decisões dos indivíduos no seio de sua comunidade.
Desde os gregos, portanto, a educação se configura como um elemento fundamental para a constituição da sociabilidade. Assim, enquanto os costumes determinam as normas e valores a serem seguidos ou transmitidos pelos sujeitos morais, a educação se impõe como um importante instrumento para o desenvolvimento moral do indivíduo. Isso porque, no universo da pólis, as virtudes que determinam a excelência moral dos agentes sociais poderiam ser transmitidas pelos ensinamentos. A educação estaria, por conseguinte, na base do esforço para fazer do indivíduo um homem bom e, do sujeito, um cidadão exemplar. A formação moral serve também de auxílio à formação do indivíduo em sua dimensão política.
Assim, o ethos não apenas representa o instrumento fundamental para a instauração de um viver em conjunto, como serve de alicerce à construção do espaço da política. Disso se conclui que ética e política são atividades que se relacionam e se complementam. A necessidade que impõe a cada ser humano o dever de respeitar os costumes e as normas da sociedade revela a importância que o ethos, ou aquilo que hoje chamamos de moral, assume em nossas vidas. Como o homem, em seu agir moral, é, ao mesmo tempo, produto da natureza e da cultura, o ethos (ou moral), segundo alguns pensadores gregos (Platão, Aristóteles, Epicuro), serviria para regular os apetites humanos e controlar as suas inclinações e instintos mediante o uso da razão (logos). Eis por que ela surge quando o homem supera sua natureza instintiva e se torna membro de uma coletividade regida por leis racionais. Ora, vimos que, para tais filósofos, nenhuma comunidade humana pode sobreviver sem o mínimo de regras ou padrões de comportamento, ou seja, sem um código de condutas. O referido código normativo representa os ensinamentos que orientam nossas ações diante do mundo e, sobretudo, em face do outro.
A ética, com efeito, trata do comportamento do homem, da relação entre a sua vontade e a obrigação de seguir uma norma, do bem e do mal, do que é justo e injusto, da liberdade e da necessidade de respeitar o próximo. A ética, enquanto campo de estudo e reflexão, revela que nossas ações têm efeitos na sociedade e que cada homem deve ser livre e responsável por suas atitudes. De fato, a responsabilidade se constitui como elemento essencial à vida moral do indivíduo. Aliás, o homem só pode ser moralmente responsável pelos atos cuja natureza conhece e cujas consequências ele é capaz de prever. Além disso, para que ele possa ser responsável por algo, é necessário que sua ação se realize livre de ameaça ou pressão externa. A responsabilidade moral exige, pois, a necessidade de o homem decidir e agir de forma livre e autônoma. Mas o problema da responsabilidade moral depende também dos elementos naturais que determinam o comportamento humano (impulsos, desejos, paixões) e da livre vontade de cada um.
Outro elemento importante do problema diz respeito às variações que se processam nos costumes e nas concepções do homem sobre o que é certo e errado em termos de conduta. Com efeito, o conteúdo (normas, valores, princípios) da moral varia historicamente, adquirindo inúmeras feições ao longo do processo civilizatório. Por isso, pode-se dizer que cada moral é filha do seu tempo ou, então, que a concepção que temos do que é bom, justo e correto, pode variar ao longo da nossa existência. As transformações socioeconômicas, bem como as mudanças que acontecem no interior de uma cultura, impõem desafios ao sujeito moral, uma vez que fazem surgir o problema referente à oposição entre o relativismo (os valores de cada comunidade) e o universalismo (os valores que são compartilhados por todos os homens). Tal oposição nos conduz às seguintes indagações: como uma norma moral pode adquirir validade universal? Por que os princípios morais variam nas mais diferentes sociedades? Vinculado a essas questões, encontra-se também o conflito entre a objetividade das normas (as leis escritas) e a subjetividade das convicções (as crenças de cada um). A adequação entre os domínios do particular e do geral constitui-se como um dos maiores desafios enfrentados pela ética, compreendida aqui como reflexão sobre como devemos agir em relação aos outros.
Ora, vimos que a ética investiga o modo pelo qual a responsabilidade moral se relaciona com a liberdade e com o determinismo natural (força dos instintos) aos quais nossos atos estão sujeitos. A ética é a teoria acerca do comportamento moral dos homens em sociedade, isto é, ela trata dos fundamentos e da natureza das nossas atitudes normativas. Compreender a relação entre vontade e obrigação constitui-se, portanto, como uma tarefa fundamental da ética.
Refletir sobre a liberdade de decidir e a obrigação de seguir o que nos é imposto pelos ordenamentos sociais, é também uma de suas mais importantes funções. Eis porque cabe à ética o papel de definir o alcance e as dificuldades que envolvem a relação entre direitos e deveres. A obrigação moral supõe a liberdade de escolha (direitos) e, ao mesmo tempo, a limitação dessa liberdade (deveres). Nesse sentido, a construção do mundo moral depende não apenas do interesse coletivo, mas igualmente da vontade de cada um. A harmonia entre tais fatores é que torna possível a vida em sociedade. Esta, por sua vez, constitui-se mediante a influência das instâncias fundamentais (religião, política, direito, economia, ciências) criadas pelos sujeitos históricos. Cada uma delas contribui para a constituição, consolidação e ampliação dos direitos fundamentais e de cidadania.
A conquista de tais direitos reflete avanço da humanidade ao longo do que chamamos progresso da civilização. Civilização esta que não poderia se erguer sem realizar os valores de liberdade, responsabilidade, justiça, solidariedade, respeito e entendimento mútuos, essenciais à vida em sociedade. O ethos é a condição de existência de tais valores. Tais valores são a condição de possibilidade da cidadania. Mas o que significa ser cidadão e como este pode exercer plenamente sua cidadania?
É comum se afirmar que ser cidadão significa possuir direito ao voto, à liberdade de expressão, à saúde, à educação, ao trabalho, à locomoção, à alimentação, à habitação, à justiça, à paz, a um meio-ambiente saudável, à felicidade, dentre outros. A cidadania é a condição social que confere a uma pessoa o usufruto de direitos que lhe permitem participar da vida política e social da comunidade no interior da qual está inserida. A esse indivíduo que podem vivenciar tais direitos, chamamos de cidadão. Ser cidadão, nessa perspectiva, é respeitar e participar das decisões coletivas a fim de melhorar sua vida e a da sua comunidade. O desrespeito a tais direitos por parte do Estado, de Instituições ou pessoas, gera exclusão, marginalização e violência. A violência surge quando o homem é tratado como uma coisa, como algo supérfluo ou sem importância. Ela, a violência, pode ser determinada ou influenciada por fatores como a desigualdade social, a exclusão e o desencantamento do sujeito diante do mundo, ainda que estes fenômenos não sejam suficientes para explicar todos os aspectos e dimensões do problema da violência.
Nessa perspectiva, é somente quando cada homem tiver seus direitos efetivados e sua dignidade reconhecida e protegida que poderemos dizer que vivemos numa sociedade justa. Até porque, sem o princípio de justiça, não pode haver sociedade, pois nela deixariam de existir a confiança e o respeito mútuo entre os indivíduos. A justiça é a maneira de se reconhecer que todos são iguais perante a lei (igualdade) e que todos devem receber de acordo com seus méritos, qualidades e realizações (equidade). A justiça é, desse modo, representada pelos princípios de igualdade e equidade. Assim, quando a sociedade se revela justa, torna-se possível instituir um clima de confiança nas Instituições e de liberdade entre os indivíduos. A justiça é a condição de um viver solidário, responsável, fraterno.
Quando a mesma deixa de ser praticada, os indivíduos ficam sujeitos ao arbítrio, à violência, à barbárie. A justiça é, antes de tudo, um valor moral, podendo ainda ser concebida como o principal fundamento da vida em sociedade. Portanto, é uma virtude que deve ser praticada por todo sujeito moral, já que sem ela torna-se impossível o exercício dos direitos fundamentais e de cidadania. Por fim, podemos compreender a moral como a instância que pode garantir a constituição de uma sociedade justa, civilizada e pacificada.

REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Brasília: Editora da UnB, 1992.
BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 1998.
BITTAR, Eduardo C. B. A justiça em Aristóteles. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
FRANKENA, William. Ética. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.
HUME, David. Tratado da natureza humana. São Paulo: UNESP,2001.
PLATÃO. República. São Paulo: Abril, 2000 (Coleção Os Pensadores).
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de filosofia. II. Ética e cultura. São Paulo: Loyola, 1993.

VAZQUEZ, Adolfo Sanchez, Ética. São Paulo: Ática, 1986.

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