segunda-feira, 28 de agosto de 2017

ÉTICA DE KANT

ÉTICA DE KANT
A moral Kantiana exclui a ideia de que possamos ser regidos se não por nós próprios. É a pessoa humana, ela própria, que é a medida e a fonte do dever. O homem é criador dos valores morais, dirige ele próprio a sua conduta.
Como para Rousseau, será para Kant a consciência a fonte dos valores. Mas não se trata de uma consciência instintiva e sentimental; A Consciência moral para Kant é a própria Razão.
Assim, a moral de Kant é uma moral racional: a regra da moralidade é estabelecida pela razão – O Princípio do dever é a pura Razão. A regra da ação não é uma lei exterior a que o homem se submete, mas é uma lei que a razão, Atividade Legisladora, impõe à sensibilidade. Nestas condições, o homem, no ato moral, é ao mesmo tempo, Legislador e Súbdito.
É uma ética formal, vazia de conteúdo, na medida em que:
1º - não estabelece nenhum bem ou fim que tenha que ser alcançado
2º - não nos diz o que temos que fazer, mas apenas como devemos atuar
O que interessa é a intenção, a coerência entre a ação e a lei, e não o fim.
A ética Kantiana possui uma Forma e não um conteúdo à essa forma necessária é a Universalidade: O racional é o Universal.

Kant critica as éticas tradicionais por serem:
a) empíricas – cujo conteúdo é extraído da experiência e portanto não permite leis universais.
b) os preceitos das éticas materiais são hipotéticos ou condicionais (meios para atingir um fim.
c) as éticas materiais são heterónomas – a lei moral é recebida, não radica na razão. A vontade é determinada a atuar deste ou daquele modo por desejo ou inclinação.

Na base da moral Kantiana está presente um determinado conceito de Homem.
- O homem é um ser que se auto-regula a si mesmo, que se auto-determina em liberdade.
- O homem possui neste sentido um poder absoluto – a sua razão autónoma e livre determina a sua própria lei.
- O homem é um destino, isto é, um ser que tem que fazer-se a si mesmo – Personalização – “ao homem cabe o destino moral da personalização.”
- Mas o homem, em virtude da sua constituição, participa também do mundo sensível, da animalidade.
- O homem é um ser dividido dentro de si próprio. Por um lado é um Ser Empírico, enquanto livre arbítrio que pode ou não agir segundo a representação da lei moral. Por outro lado é um Ser Inteligível, na medida em que leva em si um tipo de Causalidade Livre, que se impõe como exigência absoluta e incondicional.

O HOMEM COMO SER MORAL À AUTONOMAMENTE À LEI MORAL

O que é a Lei Moral?
A lei moral é para Kant, Universal, Necessária e «apriori», pois o seu fundamento não poderia ter sido tirado da experiência onde existem muitas inclinações e desejos contraditórios.
A lei moral fundamenta-se na liberdade da Razão e tem origem na consciência moral, isto é, na razão autónoma.
A lei moral é a lei que o homem enquanto ser racional e livre descobre em si mesmo como correspondendo à sua natureza. É uma lei intrínseca da razão. É a existência da moralidade no homem – A Personalidade – que o identifica com Deus: “Maximamente pessoa e ideal de existência personalizada, isto é, absolutamente causadora de si”.
No homem a Lei Moral afirma-se como um Dever e assume a forma de Imperativo Categórico.
DEVER – O que é então o dever para Kant?
“A necessidade de uma ação por puro respeito à lei”
“O valor moral de uma ação não radica pois em qualquer fim a atingir, mas apenas na máxima, no motivo que determina a sua realização, quando este motivo é o dever.
Uma ação feita por dever tem o seu valor moral, não no fim que através dela se queira alcançar, mas na máxima pela qual ela resultou: não depende pois da realidade do objeto, mas apenas meramente do princípio do querer”.
Para Kant “uma ação não é obrigatória porque é boa, é boa porque é obrigatória”.
Para Kant o Dever é o Bem: A Boa Vontade é a Vontade de agir por Dever.
A Lei Moral que se impõe por Dever assume a Forma de Imperativo Categórico
O imperativo categórico, ou da moralidade, determina a ação independentemente de todo o fim a atingir e tem o seu fundamento apenas na consciência moral.
O imperativo moral é categórico (e não hipotético ) sem qualquer condição. Respeita à forma e princípio donde resulta a ação (“o valor da ação moral ... vem do princípio da vontade que o produziu”) isto é a Intenção, se assim não fosse, as suas determinações ficariam sujeitas à possibilidade material de realizar a ação apreciando-lhe as consequências, então não seria categórico. Essa forma necessária é a Universalidade: O Racional é o Universal.
A vontade não se determina só por leis, mas por fins, mas os fins subjetivos são relativos e só podem fundar imperativos hipotéticos. Só um fim em si pode fundar um imperativo categórico, só o homem é fim em si e tem valor absoluto, é pessoa; os objetos ou seres irracionais têm valor relativo, são coisas.
Se o homem é fim em si, a sua vontade só pode estar ao serviço da razão; a vontade moral é, pois, autónoma, e há heteronomia sempre que o ser racional obedece a um móvel exterior à Razão.
A lei moral é um imperativo e obriga o homem ao Dever.

O PRÓPRIO PRINCÍPIO DA MORAL À LIMITE PRÁTICO

Constituído por impulsos sensíveis que leva à finitude de quem deve realizá-la
A moralidade não é racionalmente necessária de um Ser Infinito que se identifica com a Razão, mas sim a racionalidade possível de um ser que tanto pode assumir como não assumir a Razão como guia de conduta.
Aqui está a Raíz da exigência paradoxal de que o homem como sujeito de Liberdade valha como Númeno – mas afirmando-se como Númeno o homem não anula a sua natureza sensível – o Ser Fenómeno.
A sua numenalidade mobiliza a sua fenomenalidade.
O mundo supra-sensível que estabelece no acto da sua liberdade, é a forma da própria natureza sensível.

Mas o sujeito moral enquanto Númeno não deixa se ser fenómeno – a sensibilidade, e como tal nunca se identifica com a Razão, a moralidade nunca é conformidade completa de vontade com lei moral, nunca é Santidade.

A ÉTICA DE ARISTÓTELES E A ÉTICA DE KANT: A PROPÓSITO DE UM BREVE COTEJO

A ÉTICA DE ARISTÓTELES E A ÉTICA DE KANT: A PROPÓSITO DE UM BREVE COTEJO
Maurílio Santiago
“O que não quereis que vos façam, não o façais a nenhum outro”.
MT. 7, 12; LC 6, 31
“Existir, se não se entende por isto um simulacro da existência, não pode realizar-se sem paixão. A existência ela própria, o existir, é um esforço, simultaneamente patético e cômico; patético, porque o esforço é infinito, ou seja, dirigido para o infinito, porque é realização do infinito, o que significa o mais alto pathos; cômico, porque o esforço é uma contradição interna. Do ponto de vista patético,um segundo tem um valor infinito; do ponto de vista cômico, dois mil anos são uma brincadeira.”
Kierkegaard

1 ARISTÓTELES: A CONTEMPLAÇÃO DE DEUS COMO O BEM SUPREMO

Aristóteles é o fundador da Ética como “ciência pratica”, em contraposição à ética como “ciência teórica” almejada por Platão. Se por um lado a ética de Platão é a fundamentação da ética socrática da virtude numa ontologia do Bem (τό αγαθόν), na medida em que a ideia do Bem tem um alcance ontológico (princípio primeiro de toda a realidade) e um alcance ético (como princípio da αρετή fundamental que é a justiça e que tem de realizar-se na totalidade – indivíduo, cidade, cosmos) e, como tal, assume assim a forma de uma ciência suprema; por outro lado a ÉTICA aristotélica busca apresentar uma noção de Bem não mais unívoca e separada, como a Ideia do Bem (Platão), mas a noção de Bem passa a ser uma noção analógica (λέγεται πολλαχως), e a ÉTICA então é compreendida como a ciência do BEM no indivíduo, assim como a POLITICA é a ciência do Bem na πόλις. senão, vejamos.

Na ÉTICA A NICÔMACO Aristóteles inicia partindo da seguinte tese, a saber: “Toda arte (τέχνή) e toda investigação (μέθοδος) e igualmente toda ação (πράξίς) e todo propósito (προαίρεσις) tendem para algum bem, segundo o que parece (δοχεί). Por isso tem-se declarado com razão que o Bem é aquilo a que todas as coisas tendem”. Logo no início encontramos sem nenhum rodeio a tese geral da obra. Nela alguns elementos são, a nosso ver, fundamentais. Primeiro nosso autor tem um cuidado especial em mostrar que cada coisa, na sua especificidade, tem seu bem apropriado para o qual ela tende; como observa Tricot, causa final e Bem são idênticos. Seja a arte em geral, que visa a realização de uma obra exterior ao próprio artista, ao próprio homem (τεχνιτης; ποίητίς), seja a ação, cujo fim é imanente ao próprio homem (“europraxie”), seja também a propósito (προαίρεσις), compreendido como a escolha racional, deliberada e refletida, na qual todos tendem para algum Bem. Outro ponto importante é a presença do termo δοχεί, ao nos mostrar que Aristóteles parte ora da opinião comum, ora da opinião de algum outro filósofo, característica muito presente na obra de um pensador que tem um espírito agudo da História, ora da sua própria opinião. É a partir desse conjunto de opiniões que se dá inicio a investigação filosófica sobre a moral, e só depois, à luz da Razão, que poder-se-á dizer que há uma total evidencia dos fatos. Como mostra Ticot, “O verbo δοχειν se distingue de ϕαινεσθαι, que indica a evidência dos fatos”.
A ÉTICA aristotélica parte dos fatos, embora seja sabido que em Aristóteles não há uma ética empirista e ou utilitarista como em Hobbes, na medida em que ela expressa um princípio fundamental da ética antiga, a saber, a teleologia do Bem e a aceitação da ideia universal de “fim” e de “natureza”. Todavia poderíamos dizer, em sentido lato, que a Ética aristotélica é uma ÉTICA A POSTERIORI, vem a ser, em termos de método, uma ética que parte primeiro do conflito das opiniões para chegar ao conceito filosófico. Ao invés de partir A PRIORI como no raciocínio apodítico, que toma primeiro os princípios e as causas para depois atingir as consequências e os efeitos, Aristóteles adota um método inverso, se quisermos, A POSTERIORI, isto é, parte dos fatos para remontar por indução (έπαγωγή) até aos princípios. Tal é o caminho utilizado pelo estagirita para tratar da realidade moral e social, pois nesse contexto não se obtém uma clareza de definições como nos axiomas matemáticos e, deve-se, portanto, partir da experiência, diz Aristóteles:
Não esqueçamos a diferença que existe entre os argumentos que partem dos princípios e os que voltam para eles (…). É necessário, com efeito, partir das coisas conhecidas e, uma coisa é dita conhecida em dois sentidos, seja para nós (ήμιν), seja de uma maneira absoluta (απλώς). Sem dúvida devemos partir das coisas conhecidas para nós.
Estabelecido pois o método, Aristóteles irá desenvolver um ponto nodal da sua ÉTICA, vem a ser, construir uma filosofia da moral que deva permitir estabelecer as condições de BEM-estar ou felicidade (ευδαιμουία) do cidadão. A Felicidade assume na ÉTICA aristotélica um caráter fundamental. A Felicidade como Bem Humano tem um caráter teleológico e no interior da ÉTICA A NICÔMANO são analisados diversos tipos de Felicidade que se referem a diversos tipos de vida postas pelo filósofo dentro de uma hierarquia, ao nosso ver melhor ilustrada na figura da pirâmide, cujo ápice é a Vida do Sábio que encontra a Felicidade na contemplação (τεωρία) do SUMO BEM. Diz Aristóteles: “Do momento em que toda escolha deliberada aspira a algum Bem, que afirmamos ser os objetivos da ciência política, de outro modo diz que é de todos os bens realizáveis aquele que é o Bem Supremo. Sobre seu nome, em todo caso, a maioria dos homens estão de acordo: é a FELICIDADE, tanto no dizer do vulgo como no dizer dos sábios, todos assimilam o fato de Bem Viver e de Bem agir ao fato de ser FELIZ.
Diferem, porém, quanto ao que seja a FELICIDADE, e o vulgo não o concebe do mesmo modo que os sábios”.
Aristóteles irá buscar a definição da natureza da Felicidade (ευδαιμουία) a partir do conflito gerado pelas diversas opiniões. Na busca de uma solução (λυσις) a esta aporia (απορία) são colocados dois argumentos defensáveis, um ligado ao vulgo (οί πολλοί) outro aos sábios (οί χαριεητης; σοϕοί; αγαθοί), donde se chegará à verdade, ao conceito do que vem a ser a FELICIDADE, que passará a ser então o princípio (αρχη) para se estabelecer a filosofia moral.
O estagirita reconhece a importância dos bens externos, como por exemplo, a riqueza, porém estes têm por vista outra coisa, são apenas meio e, portanto, não podem ser o fim perfeito (τέλειος), ao passo que o Soberano Bem é, com toda evidência, alguma coisa de perfeito. Desse modo Aristóteles irá identificar o fim perfeito, o Soberano Bem, com a Felicidade, “Vê-se pois que a felicidade é algo de perfeito e auto-suficiente (αύταρχεια), e é o fim de nossas ações”.
Aristóteles assim irá definir a Felicidade como a função própria do homem, afirma: “O simples fato de viver é, com toda evidencia, uma coisa que o homem possui em comum mesmo com os vegetais; ora, o que nós procuramos é aquilo que é próprio do homem”. Assim, são refutados a nutrição e a percepção que igualam o homem às bestas. Com efeito, diz ele: “resta pois uma certa vida prática da parte racional da alma, parte que pode ser considerada, de uma parte, no sentido no qual ela esta submetida a Razão,e, de outra parte, no sentido no qual ela possui a Razão (λογος) e exerce o pensamento”. Ora, se a “Vida do elemento racional” tem dois sentidos, a referência aqui é a vida “no sentido da atividade, pois essa parece ser a acepção mais própria do Termo”. Desse modo chega-se ao conceito de Felicidade que não é, senão “uma atividade da alma conforme a Razão”.
Se a unção do homem consiste em um certo gênero de vida, isto é, em uma atividade da alma e das ações acompanhadas de Razão; se a função de um homem virtuoso é a de realizar esta tarefa, e realizar bem e com sucesso cada coisa, quanto mais estando bem cumprido no memento em que ela é segundo a excelência que lhe é própria – nessas condições é que o Bem para o homem consiste em uma atividade da alma em acordo com a Virtude (αρητη),e, em se tratando de várias Virtudes, em acordo com a mais perfeita entre elas.
A mais perfeita entre elas é a σοϕία (sophia, sabedoria, filosofia) , a Vida contemplativa, que é a suprema Felicidade.
Urge ressaltar que a ÉTICA aristotélica é também uma doutrina do justo-meio (μεσότης), no qual consiste a Virtude (αρετη) e também a investigação das possibilidades para a escolha (προαίρεσις) do justo-meio. Tal é o longo caminho percorrido no livro II da ÉTICA A NICÔMACO, no qual Aristóteles distingue os diferentes tipos de Virtude, ligadas as duas partes da alma, a saber, o lado concupiscente  e o puramente racional, daí a construção de uma espécie de tabua das Virtudes.
Todavia, o ponto importante que queremos ressaltar refere-se à contemplação (τεωρία) do Sumo Bem com a Suprema Felicidade. No final da ÉTICA A NICÔMACO Aristóteles chegará à conclusão de que “se a felicidade é uma atividade conforme a Virtude, será razoável que ela esteja também em concordância com a mais alta Virtude; essa será a Virtude da parte mais nobre que há em nós”. Nosso filósofo refere-se à, a σοϕία (Sophia), a Virtude do νους (Nous) , cuja atividade é a especulação pura (ϴεωρία). A σοϕία (Sophia, Sabedoria) é o que há de divino em nós e, com efeito, é através dela que alcançamos a perfeita felicidade; “sua atividade conforme a Virtude que lhe é própria será a perfeita felicidade”.
Oito argumentos irão dar razão ao fato de ser a CONTEMPLAÇÃO a Suprema Felicidade e a mais alta Virtude. Ei-los:

PRIMEIRO ARGUMENTO – A Razão é a melhor parte que há em nós e seus objetos são também os mais altos de todos os objetos cognoscíveis. Os objetos de contemplação do νους (Nous)  são as verdades da matemática, da filosofia da natureza e da metafísica, que formam os três ramos da sabedoria teórica; mas na hierarquia das ciências teóricas é a metafísica que ocupa o primeiro lugar, em razão da suprema e absoluta realidade de seu objeto, vem a ser, DEUS.
SEGUNDO ARGUMENTO – A Vida teórica ou a contemplação é a mais contínua. Esse caráter de continuidade é, embora de forma muito menos elevada, semelhante ao primeiro Motor; ή νόητις νοήτεως νόητις.
TERCEIRO ARGUMENTO – A atividade segundo a sabedoria é a mais aprazível das atividades conforme a Virtude.
QUARTO ARGUMENTO – A contemplação possui o caráter de auto-suficiência (), independência, incondicionalidade.
QUINTO ARGUMENTO – A atividade teórica é um fim em si mesmo e desinteressado, na medida em que ela tem a meta suprema.
SEXTO ARGUMENTO – A atividade teórica possui uma espécie de lazer que lhe é próprio.
SÉTIMO ARGUMENTO – A atividade teórica é o que há de mais divino no homem, ou ainda, “a Vida contemplativa, atividade nobre e beatificante, é contínua e eterna no Primeiro Motor, o homem não pode experimentá-la senão em raros momentos (μιιχρόν χρόνόν) no qual nosso intelecto se torna ato”.
OITAVO ARGUMENTO – A contemplação é a Verdadeira vida do homem. Se todo ser, com efeito, se define por sua essência, o homem se define por sua alma, e a função da alma não é senão a atividade segundo o νους (Nous)  , aí reside a essência do homem. Diz Aristóteles: “Para o homem a Vida conforme a Razão é a melhor e mais aprazível, já que a Razão, mais que qualquer outra coisa, é o homem. Donde se conclui que essa Vida é também a mais feliz”.

Ora, se a felicidade encontra-se na Contemplação (ϴεωρία) do Sumo-Bem poderíamos perguntar: Como Aristóteles define o Sumo-Bem? Nesse momento a questão que se põe não é mais a do conhecimento dos fatos, cujo método de investigação próprio da filosofia moral reside ao derredor da pergunta pelo o quê (ότί), mas, sim, a busca pela causa, pela essência, pelo porquê (διότί). Somos assim remetidos à METAFISICA, em especial ao livro Δ, onde Aristóteles prova a primazia da substância e nos fornece o seu conceito.  Lembremos que esta obra e em especial o célebre livro constitui, a nosso ver, uma das mais belas páginas escritas pelo gênio de Aristóteles e que, sem duvida, irá marcar com uma força caracterizante ímpar a cultura ocidental. Nela Aristóteles mostra a necessidade de um primeiro Motor eterno, cuja essência seja não sensível, mas imóvel, eterna, incorruptível e dotada de um movimento eterno e circular. Pois diz Aristóteles: “É preciso que exista um principio tal que sua substância seja ato mesmo”. Essa substância é ato, pois se fosse potência, haveria um momento no qual nada tivesse existido, o momento do não-ser. “O mundo de toda eternidade é o que é se o ato é anterior à potência”.
Assim, Deus, forma pura e transcendente, ser supremo, é a soma e o termo da série das formas, desenvolvidas entre o pólo da matéria e o pólo do Pensamento Puro. Ele não tem outra condição senão ele mesmo, Ele é a realidade por excelência, que confere ao resto existência e inteligibilidade. Tudo o que há participa em algum grau, e em alguma medida de sua Perfeição. Deus é um ser absolutamente real, absolutamente livre de toda matéria e de toda potência. Ato Puro, que informa tudo e não é informado por ninguém, é, assim, causa formal e suprema inteligibilidade, que em si contém tudo o que é inteligível. Com efeito Deus é, por si mesmo, causa final, Soberano Bem, atração e animação universal, objeto último do amor e do desejo, tudo aspira por sua atividade, a imitar a Vida eterna e perfeita, que é o próprio Deus; ato puro, Primeiro Motor, eterno e imóvel, pensamento do pensamento. Ora, Deus não é possuidor da Vida, mas é a própria Vida, ato puro, e a Vida contemplativa, a contemplação de Deus, do Soberano Bem, é o fim da Vida prática e o ideal de toda Vida. “Este caráter divino da inteligência se encontra no mais alto grau da inteligência divina, e a contemplação é a beatitude perfeita e soberana, o gozo supremo e a soberana felicidade”.

KANT E A ÉTICA RACIONALISTA
Kant é a expressão máxima da ética racionalista, de caráter abstrato, que culmina na ética do DEVER (Imperativo Categórico) e na universalidade da Razão, segundo o otimismo da AUFKLÄRUNG.  Para Kant a Filosofia deve indagar sobre as possibilidades e limites da Razão no campo das três interrogações fundamentais que são respondidas pela ciência, pela ÉTICA e pela Religião: o que posso saber? O que deve fazer? O que me é permitido esperar?
No “Prefácio” da FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES Kant aceita a divisão da Filosofia (de origem estóica) em Física, Ética e Lógica. A lógica pertence à Filosofia formal e ocupa-se apenas da forma do Entendimento e da Razão em si mesmas e das regras universais do pensar em geral, sem distinção do objeto. Já a Física e a Ética pertencem à Filosofia material, isto é, “ocupam de determinados objetos e das leis a que eles estão submetidos”,desse modo a Física trata das “leis da natureza” e a ÉTICA ou “DOUTRINA DOS COSTUMES” (SITTENLEHRE) trata das “leis da liberdade”.
A intenção de Kant é, pois, fundamentar a moral em princípios estritamente racionais, ou seja, princípios “A PRIORI”. Essa é a tarefa a que se propõe a METAFÍSICA DOS COSTUMES. Isso porque Kant sabe que só é possível uma ÉTICA se, e somente se, esta estiver fundamentada na Metafísica. Diz ele:

 A lei moral, na sua pureza e autenticidade (e é exatamente isso o que importa na prática), não se deve buscar em nenhuma outra parte senão numa Filosofia pura, e esta (Metafísica) tem que vir portanto em primeiro lugar, e sem  ela não pode haver em parte alguma uma Filosofia moral; e aquela que mistura os princípios puros com os empíricos não merece mesmo o nome de Filosofia (pois esta distingue-se do conhecimento racional comum exatamente por expor em ciência à parte aquilo que este conhecimento só concebe misturado); merece ainda menos o nome de Filosofia moral, porque, exatamente por este amálgama de  princípios, vem prejudicar até a pureza dos costumes e age contra a sua própria finalidade.
Com efeito, a concepção Kantiana da moral se estrutura, assim, em três móveis que correspondem às três seções dos FUNDAMENTOS DA METAFÍSICA DOS COSTUMES.

1) “Primeira seção: transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico”. Nesse conhecimento moral da razão vulgar aparecem duas noções centrais: a noção de “boa-vontade” ( GUTER WILLE) e a noção de Dever (PELICHT) que lhe é correspondente.” … A necessidade das minhas ações por puro respeito à lei prática é o que constitui o dever, perante o qual tem de ceder qualquer outro motivo, por que ele é a condição e uma vontade boa em si, cujo valor é superior a tudo.”
2) “Segunda seção”:  Transição da Filosofia moral popular para a METAFÍSICA DOS COSTUMES”. Na METAFÍSICA DOS COSTUMES serão definidos rigorosamente as noções de: Lei, Valor absoluto e necessário ou A PRIORI da Razão Pura no seu uso prático; dever, necessidade de uma ação com respeito à lei. É um “A PRIORI” da Razão Pura no seu uso prático e, portanto, não é derivada da experiência;  Vontade, “tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é necessária a Razão, a Vontade não é outra coisa senão Razão Prática”, Imperativo, fórmula do mandamento ou dever, “a representação de um princípio objetivo, enquanto obrigante para uma vontade, chama-se um mandamento (da Razão); e a formula do mandamento chama-se Imperativo”. O Imperativo se divide em hipotético, quando diz respeito aos meios, e Categórico, quando se prescreve uma ação objetivamente necessária por si mesma, ou “se a ação é representada como boa em si, por conseguinte, como necessária numa vontade em si conforme a Razão como Princípio dessa Vontade, então  o Imperativo é Categórico”.
O Imperativo Categórico universaliza a máxima que tem caráter subjetivo. As duas principais fórmulas que Kant propõe do Imperativo Categórico são:
“Age como se a máxima de tua opção devesse tornar-se, por tua vontade uma lei universal da natureza”.
“Age de tal modo que trates sempre a humanidade, seja na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim e nunca como um meio”.
O fim é compreendido como aquilo que serve à Vontade de princípio objetivo da sua autodeterminação (ZWECK); e quando este princípio é dado pela só Razão, ele tem de ser valido igualmente para todos os seres racionais. O meio é o que contém apenas o princípio da possibilidade da ação, cujo efeito é um fim. Explicita Kant:
O princípio subjetivo do desejar é o móbil, o princípio objetivo do querer é o motivo; daqui a diferença entre fins subjetivos, que assentam em mobílies e objetivos, que dependem de motivos, válidos para todo o ser racional. Os princípios práticos são formais, quando fazem abstração de todos os fins subjetivos; mas são materiais quando se baseiam nestes fins subjetivos e portanto em certos móbiles.



3) “Terceira seção: último passo da Metafísica dos Costumes para a Crítica da Razão prática”. Aqui Kant coloca a questão sobre a possibilidade de um Imperativo Categórico. O pressuposto da Crítica da Razão Prática é a liberdade como FAKTUM a priori e, portanto, constitutivo da Razão Pura enquanto prática. A prioridade da Razão Prática implica, por sua vez, a autonomia do sujeito moral e o chamado formalismo ético, ou seja, a exclusão dos conteúdos “A POSTERIORI” da sensibilidade na determinação da norma na moralidade. Em Kant o sujeito ético é, eminentemente, a pessoa racional.
Nos FUNDAMENTOS DA METAFÍSICA DOS COSTUMES e na CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA Kant efetua uma espécie de propedêutica a uma METAFÍSICA DOS COSTUMES, que é, ao que nos parece, uma obra que visa uma tentativa de aplicação, aos casos e às circunstâncias especiais da vida real, daqueles princípios universais afirmados a propósito da lei moral e do Imperativo Categórico.
Uma questão importante da METAFÍSICA DOS COSTUMES refere-se à divisão dessa obra em duas grandes partes, a saber, a primeira dedicada à Doutrina do Direito e a segunda a segunda à Doutrina da Virtude. Parece-nos evidente que Kant percebia que a unidade entre a Teoria e a Prática no domínio político não possui apenas um sentido ético, mas é antes de tudo uma questão de Direito. Ora, o direito não supõe, para a sua realização, as mesmas condições que a ÉTICA, isto é, do valor ao fato e do direito ao fato a distância não é a mesma, como ensina Kant. Com efeito, para se ter direitos não é absolutamente necessário ser um homem de BEM, não é necessário agir por dever; mas é necessário, somente, agir conforme o dever. Assim, a Doutrina do Direito pretendeu ser um estudo relativo à realização, na vida gregária, do lado objetivo da lei moral, ao passo que a Doutrina da Virtude nos reconduz, ao invés, ao lado subjetivo da moralidade, ou seja, o qual mesmo sendo claramente avaliável só no íntimo da consciência de cada um (avaliação esta que não podemos saber, uma vez que não podemos saber do outro) é, aqui, objetivada, vem a ser, suposta como visível, com a intenção de nos levar a exercitar nosso conhecimento moral e oferecer a nossa consciência  um recurso eficaz para que possa tornar-se sempre mais pronta e vigilante.
Já no “PRÓLOGO” da segunda parte da METAFÍSICA DOS COSTUMES, isto é, “Princípios Metafísicos da Doutrina da Virtude” Kant inicia colocando a seguinte questão:
 Tem de haver para a Filosofia um sistema de conceitos racionais puros, independentes de toda condição da intuição, isto é, uma metafísica. Trata-se, pois, de saber se para toda a Filosofia prática, enquanto doutrina dos deveres, portanto também para a doutrina da Virtude, são necessários PRINCÍPIOS METAFÍSICOS para poder estabelecê-la como uma verdadeira ciência, e não como um agregado de doutrinas examinadas por separado (fragmentariamente)
Portanto, logo no início, Kant busca a exclusão dos conteúdos “A POSTERIORI” da sensibilidade na determinação da norma na moralidade.
Para Kant nenhum princípio moral se funda no sentimento, na inclinação, mas apenas em princípios estritamente racionais, pois, caso contrário, a doutrina da Virtude não terá nenhuma seguridade ou pureza, nem sequer força impulsora. Se renunciarmos aos princípios racionais e partimos do sentimento patológico ou puramente estético para determinar o dever, ou ainda, diz ele, “se partimos da matéria  da Vontade, do fim, e não da forma da Vontade, isto é, da lei, então efetivamente não há lugar para princípios metafísicos da Doutrina da Virtude”. Isto porque o conceito de dever é um “A PRIORI” da Razão Pura no seu uso prático e, portanto, não deriva da experiência. Isto porque para Kant tudo indica que a experiência é a mãe do engano.

Com efeito o que diz Kant sobre uma “doutrina da Felicidade?” Diz ele, “ultimamente se há pensado em uma certa felicidade moral, que não se baseia em causas empíricas, o que é um absurdo, contraditório em si mesmo”. Aqui nosso filósofo refere-se aos eudaimonistas que dizem ser a felicidade o autêntico princípio motor a partir do qual as pessoas atuam virtuosamente. Ora, se nos FUNDAMENTOS DA METAFÍSICA DOS COSTUMES o dever define-se, pois, como “a necessidade de uma ação por respeito à lei”, para o eudaimonista,
Não é o conceito do dever o que determina imediatamente a Vontade, mas que só é determinado a cumprir o dever por meio da perspectiva da Felicidade”. Assim o eudaimonista é levado a cair em um círculo, pois, “posto que só pode esperar essa recompensa da Virtude da consciência do dever cumprido, esta última tem que preceder; isto é, tem que ver obrigado a cumprir seu dever antes de pensar – e sem pensar – que a Felicidade será a consciência de haver observado o dever. Portanto, com sua etiologia cai em um círculo, isto é, só pode esperar ser feliz (ou inteiramente ditoso) se é consciente de que há observado seu dever, porém, só pode ser movido a observá-lo se prevê que será feliz desse modo..
Aqui dois motivos contraditórios, segundo Kant, se justapõem, a saber, um motivo moral, na medida em que deve cumprir seu dever sem perguntar primeiro que efeito isto resultará em sua felicidade; e um motivo patológico na medida em que só pode reconhecer algo como dever se pode contar com a felicidade que ele alcançará. Desse modo, para Kant, quando se coloca como princípio a eudaimonia (princípio da felicidade) em vez da eleuteronomia (ou princípio da liberdade da legislação interior), então a consequência e a eutanásia, a doce morte de toda moral.
Qual é para Kant a causa desses erros? É a não compreensão do que seja o Imperativo Categórico, que é compreendido como sendo o que representa a ação como objetivamente necessária em razão de si mesma. É um juízo apoditicametne prático e vincula necessariamente a Vontade à lei por meio de uma síntese prática A PRIORI.  O Imperativo Categórico é o imperativo próprio da moralidade: “Faze isto porque deves fazê-lo”.
Kant, na esteira de Agostinho e Lutero, sabe que o homem e um ser de impulsos, de mancha, de inclinações, e a questão então é, como mesmo sendo “curvus”, deve ser virtuoso. Para tanto a lição de Kant é que a liberdade é fim em si mesma e para si mesma, e a liberdade se autofinaliza no consentimento ao BEM, dando-se a si mesma o seu verdadeiro como Virtude. Diz ele: “O homem tem que julgar-se capaz de lutar contra essas forças e vencê-las mediante a RAZÃO, não só no futuro, mas também no agora (ao pensá-lo): isto é, poder aquilo que a lei ordena incondicionalmente é o que deve fazer”. Kant busca assim a união da ação com a máxima, a tal ponto que “pela sua própria máxima a Vontade possa considerar-se, ao mesmo tempo legisladora universal”, ou ainda, “já que as inclinações sensíveis nos conduzem a fins (como matéria do arbítrio), que podem opor-se ao dever, a Razão Legisladora não pode defender-se dessas influências a não ser mediante um fim moral contraposto, que tem, portanto, que estar dado A PRIORI, com independência das inclinações”.

Dessa feita, exposto um breve cotejo entre as duas éticas, talvez devesse aqui optar e definir por uma posição, ou seja, Aristóteles ou Kant? Mas confesso que isso eu não farei, haja vista ser muito jovem na filosofia e reconhecer que tal posição me exigirá talvez a velhice.

domingo, 6 de agosto de 2017

ÉTICA E ESTÉTICA COMO PROCESSOS DE FORMAÇÃO DE VALORES

Ética e estética como processos
de formação de  valores
Marcos Cordiolli

A vida da humanidade em comunidade promoveu a criação de ambientes culturais, composto por regras, costumes, valores, hábitos, tecnologias, linguagens, rituais etc, e neste conjunto criou-se também referenciais para as condutas sociais, por convenção, chamado de moral. Os indivíduos assumem perante para si ou perante grupos de convívios conjuntos específicos de valores e padrões de conduta que denominamos de ética. Além disso, desenvolvem padrões para produção artística e de julgamento do considerado belo que denominamos de estética. A moral é, entre outras coisas, o referencial (formado por um conjunto básico de valores e padrões de conduta) dos grupos sociais de normalidade e inclusão. Nas diversas sociedades, nas mais distintas épocas, existiram pessoas excluídas ou perseguidas, por se colocarem além das margens delimitadas, fora do campo de tolerância e/ou em dissonância com os padrões de normalidades determinados pela moral vigente no grupo.
A ética pode ser definida como um conjunto de valores e padrões de conduta, auto assumidos ou auto-proclamados, que constituem auto-referencia para a vida em sociedade e que expressa formas de ver e sentir o mundo. Há, portanto, ética individual e outra coletiva (como a dos médicos, dos educadores, dos policiais).
Estes valores e padrões de conduta representam juízos que julgam adequados (ou não) os valores e padrões de conduta do grupo social (e, portanto, também moral) no qual se está inserido. A ética significa tanto uma racionalização como um compromisso com valores e padrões de condutos julgados corretos, belos, virtuosos e necessários, por isso, que alguns a definem como a ciência da moral, enquanto outros a tratam como balizadoras para as ações humanas .justas, corretas e ideais visando à harmonia e a perfeição.
A estética ocupa da produção artística, ora se confundindo com a filosofia da arte, das sensações, dos processos se ocupa da fruição e criação, por vezes também se assume com capacidade (e direito) de julgamento pretendendo definir o belo, ou no extremo o belo puro.
O pressuposto tanto da ética como a estética são julgamentos de valor que definem referenciais de certo ou errado, bom ou mal, bem ou mau, belo ou feio.

Tema 2: Uma ética estética ou uma estética ética

A ética seria estética ou estética teria uma ética? Isto posto podemos enunciar a seguinte questão [a primeira]: de que maneira a ética [como referencial de valores] se entrecruza com a estética? Uma aproximação, talvez possa ser: a arte sendo produto de sensações, portanto, expressa, também, os valores daqueles ou daqueles que a produzem: alguns abertamente, outros veladamente e, há até aqueles inconscientes (a leitura de certas obras de arte permite descobrir elementos sobre autores, desconhecidos conscientemente por eles próprios). E como toda obra de arte é uma linguagem, também expressa conjuntos de signos ideológicos, por mais polifônica que possa ser. Portanto, os imperativos éticos constituem-se, também, e mesmo que inconscientes, em imperativos estéticos. E vice-versa. Isto nos remete a outra questão [a segunda]: uma ideologia/ideário ética corresponderia a uma estética também ética? Jean Claude Bernadet, ao tratar do cinema, afirma, um fuzil é sempre um fuzil: importa quem o maneja e contra quem é manejado. Assim, os discursos e as obras são expressões destes ideários, mesmo que não representem explicita e necessariamente posições partidárias, mas representam a sensibilidade do autor sobre o mundo. Parêntese: os poetas curitibanos do inicio do século XX (refiro-me explicitamente ao grupo em torno de Dario Veloso que conheço um pouco
porque tive a oportunidade de estudar num trabalho acadêmico) não assumiam uma posição política explícita, mas produziram textos melancólicos, refletindo o descontentamento com a ordem urbana e industrial. A melancolia era signo de um saudosismo, que não se unificava as lutas anticapitalista, mas que também não se somavam ao ufanismo modernizador.
Assim sendo, podemos nos colocar uma outra questão [a terceira]: em que medida a arte pode estar a serviço de uma posição ideológica decorrente da concepção ética do artista? A história da arte apresenta inúmeros exemplos explícitos, talvez possamos nos lembrar de Guernica de Picasso, quase um monumento de denuncia a agressão fascista da população espanhola (mas que hoje se converteu num panfleto pacifista).
Então podemos nos perguntar agora: haveria um limite, uma medida, em que a arte, a serviço de uma ideologia, poderia converter-se num panfleto/instrumento de propaganda?
Parêntese: no Brasil, talvez, tenhamos que obrigatoriamente nos remeter aos casos de Jorge Amado e Plínio Salgado representam expressões antagônicas no Brasil, este em defesa do integralismo e aquele do comunismo. Esta situação pode, ainda, ser ilustrada pela conversa de Portinari e Neruda: conta-se de quando Neruda encontrou Portinari, aquele influenciado pelo realismo socialista, disse que este deveria representar os trabalhadores como fortes e viris, pois seriam portadores do futuro e do socialismo. O pintor brasileiro, segundo dizem, teria se limitado a dizer que estes eram os trabalhadores que ele conhecia em Brodósqui.
Parece haver duas situações: da arte que combate o capitalismo como panfleto, corrente esta distinta de outra que, em tese, criticaria o capitalismo mostrando a miserabilidade dos trabalhadores.
Duas linguagens artísticas, distintas, mas que poderiam estar entre as consideradas como engajada. Uma situação, mais pertinente ao século XX, em que arte perdeu a sua aura na época da reprodutibilidade técnica, numa formulação clássica de Walter Benjamim, poderíamos então apontar para mais uma questão [a quarta]: em que medida o artista e sua ética podem ser desvinculados da produção na arte industrializada? Ou ainda: haveria diferenças éticas na estética da arte de autoria e/ou conceitual daquela produzida sob encomenda para um mercado anônimo?
Esta questão merece, pelo menos, duas abordagens. Num primeiro campo, localizamos a arte industrial: objetos similares a obras de artes visuais, são produzidos em larga escala e vertidos em objetos de decoração, boa parte deles, sem identificação da autoria. A indústria cultural – da literatura, cinema e televisão - em grande parte, produz obras em série e em linhas de montagem, seguindo regras rígidas, determinadas pelo produtor, em consonância, com mercado, convertendo o artista em prestador de serviços e a obra de arte em mercadoria de entretenimento.
Num segundo campo, temos a arte a serviço da propaganda e do marketing. Filmes, fotografias e textos, convertem-se em instrumentos eficazes para expressar valores e ideias, que necessariamente não correspondem a dos artistas que as produzem. Estas produções continuariam as ser arte? Ou romperiam com um suposto preceito ético de que a Arte por si, necessariamente expressa o artista e, portanto, não pode ser realizada sob encomenda ou com outros fins? Temos ainda uma outra questão [a quinta]: nos filmes e nos espetáculos de dança, teatro e música, em que medida, artistas poderiam aceitar a participação nas produções com as quais possuem divergências éticas? Os atores e músicos em muitos espetáculos são submissos à direção do músico principal – nos musicais - ou do diretor de filmes e espetáculos. Por vezes, estes se conduzem por temas que o músico ou o ator pode estar em conflito. Neste ponto, mais uma contraste ente ética e estética.

Tema 3: Uma tipologia de questões éticas em obras de arte

As obras de arte tratam de temas diversos, nos quais as questões éticas estão associadas a personagem, pelas quais o autor as críticas, as apoia ou simplesmente faz menção a existência. Mas é importante verificar que em diversas situações a obra de arte está voltada para a defesa de alguns valores e/ou padrões que pode estar em dissonância com o apreciador. Podemos constatar, pelos menos, as seguintes situações: Na primeira situação, a obra de arte pode ser expressão por defesa ou explicitação - de uma posição que poderia ser contrária à ética do apreciador.
Parêntese: Cazuza, grande poeta e mestre no manuseio das palavras, teria uma postura que poderia ser considerada por alguns de seus admiradores como calhorda. (calhorda: diz-se de ou pessoa sem valor, desprezível, ordinária, segundo o Houaiss Eletrônico) em .Faz parte do meu show.

Te pego na escola e encho a tua bola com todo o meu amor
Te levo pra festa e testo o teu sexo com ar de professor
Faço promessas malucas tão curtas quanto um sonho bom
Se eu te escondo a verdade, baby, é pra te proteger da solidão
Faz parte do meu show
Faz parte do meu show, meu amor

A letra veicula o ideário de um conquistador que utiliza de subterfúgios, para a conquista, que poderia ser considerada como reprovável, sob o ponto de vista de alguns esquemas éticos e morais.
Apreciadores da obra de Cazuza poderiam estar em desacordo ético com a mensagem desta canção. deste músico? Um outro exemplo antigo, talvez, nem seja o mais significativo . e penso que é até uma injustiça com os autores, considerando a época em que a produziram . mas, vale por sempre provocar polemicas com as feministas: .Ai que Saudades da Amélia. de Ataulfo Alves e Mário Lago.

Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade

Poderíamos listar uma porção de outras situações, em particular, as músicas sexistas do funk carioca, no samba de breque etc. Uma segunda situação: é possível apreciar a obra de arte de um autor cuja conduta poderia ser reprovada na perspectiva ética do apreciador?
Parêntese: Jorge Luis Borges em um determinado momento apoiou o golpe militar na Argentina, que produziu uma ditadura nefasta. Os leitores de Borges, que reprovavam as suas posições políticas, poderiam continuar apreciando a sua obra literária?
Pensando sobre estas situações poderíamos apontar, ainda uma outra, questão: seria possível a produção de obras de arte que tragam em si a contradição do mundo, expondo diversos lados de uma situação ética?
Parêntese: dentre as obras que lidam com a contradição, eu destacaria o filme. Faça a coisa certa. (1989) do Spike Lee. Diferente de outras obras do autor, que às vezes radicaliza nas situações da vida concreta da comunidade afro-estudinidense, ou às vezes caminha para uma postura claramente panfletária, como o caso de Malcom X. Neste filme, os personagens são apresentados em suas contradições concretas, é um filme tão explosivo que parece singelo, e até mesmo inocente, se não fosse tão duro.

Tema 4: formação ética e formação estética

Ética e estética sendo definidas como conjunto de valores - como pressupomos neste ensaio - nos remetem a questão do como estes seriam formados. Eu quero arrolar, mesmo que rapidamente, alguns temas e problematizações desta questão.
Qual a função do ambiente cultural na formação de valores? O ambiente cultural é por excelência o principal espaço modelador de valores - morais, éticos e estéticos. O ambiente cultural - composto por diferentes grupos de convívio - contêm diversos agentes formadores de valores - morais, éticos e estéticos – disputando permanentemente as mentes e sentimentos das pessoas. O convívio - com familiares, nas igrejas, nas escolas, no trabalho, nos clubes, nos locais de lazer - estabelece interlocuções polifônicas com linguagens artísticas, com modelos sociais interferindo decisivamente na formação de padrões éticos, morais e estéticos. Mas a vida num ambiente cultural não homogeneíza as pessoas, mas seguramente, cria condições para padrões sejam eles éticos ou estéticos - sejam mais aceitos do que outros. As multiplicidades de mídias contemporâneas também produzem interferências, cada vez mais significativas e decisivas – na formação de padrões estéticos, pois permitem relações mais individualizadas. Este processo seguramente reduz o poder formativo dos ambientes culturais e estabelecem novas referências e maior autonomia na formação de valores éticos e estéticos.
Qual a função do racionalismo na formação de valores? O racionalismo é, também, agente de formação de valores - morais, éticos e estéticos. O iluminismo, herdeiro da tradição helênica, defendeu com ênfase que a razão (e o racionalismo) seria o elemento fundamental da formação dos valores.
Pressupondo que os seres humanos seriam livres para a escolha consciente dos valores, e daí, portanto, o fundamento do conceito de ética e estética como valores auto-determinados. Mas, o idealismo do iluminismo não se professou plenamente. Os elementos da psique humana atuam em conjunto com a racionalidade, mobilizando sentimentos, desejos e afetos, além das marcas deixadas no aparelho psíquico pelas mais diversas experiências humanas. Assim os seres humanos não são quem realmente acreditam racionalmente - que sejam. Assim, o racionalismo tem um peso fundamental na aceitação negação de valores, porém, não são exclusivamente determinantes. Qual a medida, então, das marcas nos aparelho psíquico dos indivíduos na formação de valores? A experienciação da diversidade de situações de vida marca profundamente o aparelho psíquico das pessoas mantendo-as em situações conscientes, subconscientes e inconscientes. Esta teoria, proposta inicialmente por Freud, ajuda a explicar preferência e repulsas, fobias e desejos, recalques e condutas, inclusive as não-conscientes. Assim, mesmo que professem valores publicamente, as pessoas têm em seus respectivos inconscientes e subconscientes, outros desejos e pulsões, que podem ser reprovados tanto pela moral quando pelos códigos de ética. Assim, pessoas ambientes culturais similares tendem a ter professam gostos similares, mas os elementos da psique e da razão - permitem mudanças e rupturas, formando valores distintos e peculiares. Casos de gêmeos, que criados em situações similares, formam valores morais e estéticos - ou padrões estéticos distintos são, talvez, o exemplo mais concreto desta situação.
Arquétipos culturais produzem efeitos sobre valores? As teorias dos arquétipos - generalizada a partir da obra de Carl Jung, defendem que a cultura e a psique são influenciadas por heranças culturais inconscientes, transmitidas de geração a geração, produzindo na formação humana o reforço de diversos valores e padrões de conduta. Os arquétipos estariam, portanto, presentes na formulação dos esquemas éticos e estéticos, além da interferência direta do senso moral.
A formação de valores - morais, éticos e estéticos - teria, em algum grau, influência filogenética? As filosofias iluministas, principalmente no século XX tentaram excluir diversos tipos de determinismo genético no comportamento humano, assim como o de habilidades inatas, em particular, o conceito de dom para artes, profissões ou crimes. No entanto, a genética contemporânea tem apresentado estudos de relacionamento de comportamentos com genes, que indicariam possibilidades de herança genética, para certos procedimentos repetidos por gerações. Embora as pesquisas ainda não sejam conclusivas, mas ajudam a reforçar e disseminar crenças populares nesta perspectiva.
Estes fatores, ou ao menos alguns deles, somados a outros não arrolados neste ensaio, expõe a complexidade do processo de formação de valores. O que podemos deduzir, sem esforço, que cada ser humano constitui tecidos peculiares de valores, portanto de códigos de ética como de padrões estéticos, como resultado de diferentes e complexas interações.

Anexo: A escola pode dirigir a formação de valores e padrões estéticos. A resposta para esta questão é afirmativa. Para esta questão vou apresentar uma problematização. Toda ação escolar é antes de tudo uma interferência na formação de identidade de crianças e jovens dirigidos por um ideário da cultura adulta. A instituição escolar, segundo Hanna Arendt, é [...] instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo. [Arendt, 1992, p. 238]. A escola é o mecanismo mais forte e mais explícito de incorporação das novas gerações de nossa espécie na cultura da geração que a pariu. Foucault já disse que é notável como as escolas se parecem acentuadamente com as prisões, os quartéis e os hospícios. Todos eles instrumentos de incorporação a um padrão de normalidade.
Os processos escolares [...] constituem formas de regulação social, produzidas através de estilos privilegiados de raciocínios. Aquilo que está no currículo não é apenas informação a organização do conhecimento corporifica formas particulares de agir, sentir, falar e «ver» o mundo e o «eu». [Popkewitz, 1995, p. 175].
Esses processos implicam também em dispositivos de regulação moral, pois definem [...] qual conhecimento é legítimo e qual é ilegítimo, quais formas de conhecer são válidas e quais não o são, o que é certo e o que é errado, o que é moral e o que é imoral, o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio, quais vozes são autorizadas e quais não o são. [Silva, 1995a, p. 4].
A escola dirige a formação de identidade e, portanto, produtora de valores e padrões tanto éticos quanto estéticos. Mas para isto a pedagogia tem enfrentado diversos problemas, que poderia expressar, alguns deles, nas seguintes questões: Quais as propostas pedagógicas? Elas são poucas e ainda assim depende do voluntarismo dos professores. Qual o sentido desta formação? Geralmente é a do mundo adulto e a partir dos referencias éticos dos professores. Qual o direito dos adultos para definir qual conhecimento é legítimo e qual é ilegítimo, quais formas de conhecer são válidas e quais não o são, o que é certo e o que é errado, o que é moral e o que é imoral, o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio, quais vozes são autorizadas e quais não o são? Há um caminho? Há vários, que passam por escolas abertas e não-diretivistas. 

Referências
ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 1980.
POPKEVITZ, Thomas S. Reforma educacional: uma política sociológica. Porto alegre, Artes Médicas, 1997.
SILVA, Tomaz Tadeu. Currículo e Identidade Social: Novos Olhares. XVIII Reunião Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação. Caxambu
(MG), 1995.