domingo, 6 de agosto de 2017

ÉTICA E ESTÉTICA COMO PROCESSOS DE FORMAÇÃO DE VALORES

Ética e estética como processos
de formação de  valores
Marcos Cordiolli

A vida da humanidade em comunidade promoveu a criação de ambientes culturais, composto por regras, costumes, valores, hábitos, tecnologias, linguagens, rituais etc, e neste conjunto criou-se também referenciais para as condutas sociais, por convenção, chamado de moral. Os indivíduos assumem perante para si ou perante grupos de convívios conjuntos específicos de valores e padrões de conduta que denominamos de ética. Além disso, desenvolvem padrões para produção artística e de julgamento do considerado belo que denominamos de estética. A moral é, entre outras coisas, o referencial (formado por um conjunto básico de valores e padrões de conduta) dos grupos sociais de normalidade e inclusão. Nas diversas sociedades, nas mais distintas épocas, existiram pessoas excluídas ou perseguidas, por se colocarem além das margens delimitadas, fora do campo de tolerância e/ou em dissonância com os padrões de normalidades determinados pela moral vigente no grupo.
A ética pode ser definida como um conjunto de valores e padrões de conduta, auto assumidos ou auto-proclamados, que constituem auto-referencia para a vida em sociedade e que expressa formas de ver e sentir o mundo. Há, portanto, ética individual e outra coletiva (como a dos médicos, dos educadores, dos policiais).
Estes valores e padrões de conduta representam juízos que julgam adequados (ou não) os valores e padrões de conduta do grupo social (e, portanto, também moral) no qual se está inserido. A ética significa tanto uma racionalização como um compromisso com valores e padrões de condutos julgados corretos, belos, virtuosos e necessários, por isso, que alguns a definem como a ciência da moral, enquanto outros a tratam como balizadoras para as ações humanas .justas, corretas e ideais visando à harmonia e a perfeição.
A estética ocupa da produção artística, ora se confundindo com a filosofia da arte, das sensações, dos processos se ocupa da fruição e criação, por vezes também se assume com capacidade (e direito) de julgamento pretendendo definir o belo, ou no extremo o belo puro.
O pressuposto tanto da ética como a estética são julgamentos de valor que definem referenciais de certo ou errado, bom ou mal, bem ou mau, belo ou feio.

Tema 2: Uma ética estética ou uma estética ética

A ética seria estética ou estética teria uma ética? Isto posto podemos enunciar a seguinte questão [a primeira]: de que maneira a ética [como referencial de valores] se entrecruza com a estética? Uma aproximação, talvez possa ser: a arte sendo produto de sensações, portanto, expressa, também, os valores daqueles ou daqueles que a produzem: alguns abertamente, outros veladamente e, há até aqueles inconscientes (a leitura de certas obras de arte permite descobrir elementos sobre autores, desconhecidos conscientemente por eles próprios). E como toda obra de arte é uma linguagem, também expressa conjuntos de signos ideológicos, por mais polifônica que possa ser. Portanto, os imperativos éticos constituem-se, também, e mesmo que inconscientes, em imperativos estéticos. E vice-versa. Isto nos remete a outra questão [a segunda]: uma ideologia/ideário ética corresponderia a uma estética também ética? Jean Claude Bernadet, ao tratar do cinema, afirma, um fuzil é sempre um fuzil: importa quem o maneja e contra quem é manejado. Assim, os discursos e as obras são expressões destes ideários, mesmo que não representem explicita e necessariamente posições partidárias, mas representam a sensibilidade do autor sobre o mundo. Parêntese: os poetas curitibanos do inicio do século XX (refiro-me explicitamente ao grupo em torno de Dario Veloso que conheço um pouco
porque tive a oportunidade de estudar num trabalho acadêmico) não assumiam uma posição política explícita, mas produziram textos melancólicos, refletindo o descontentamento com a ordem urbana e industrial. A melancolia era signo de um saudosismo, que não se unificava as lutas anticapitalista, mas que também não se somavam ao ufanismo modernizador.
Assim sendo, podemos nos colocar uma outra questão [a terceira]: em que medida a arte pode estar a serviço de uma posição ideológica decorrente da concepção ética do artista? A história da arte apresenta inúmeros exemplos explícitos, talvez possamos nos lembrar de Guernica de Picasso, quase um monumento de denuncia a agressão fascista da população espanhola (mas que hoje se converteu num panfleto pacifista).
Então podemos nos perguntar agora: haveria um limite, uma medida, em que a arte, a serviço de uma ideologia, poderia converter-se num panfleto/instrumento de propaganda?
Parêntese: no Brasil, talvez, tenhamos que obrigatoriamente nos remeter aos casos de Jorge Amado e Plínio Salgado representam expressões antagônicas no Brasil, este em defesa do integralismo e aquele do comunismo. Esta situação pode, ainda, ser ilustrada pela conversa de Portinari e Neruda: conta-se de quando Neruda encontrou Portinari, aquele influenciado pelo realismo socialista, disse que este deveria representar os trabalhadores como fortes e viris, pois seriam portadores do futuro e do socialismo. O pintor brasileiro, segundo dizem, teria se limitado a dizer que estes eram os trabalhadores que ele conhecia em Brodósqui.
Parece haver duas situações: da arte que combate o capitalismo como panfleto, corrente esta distinta de outra que, em tese, criticaria o capitalismo mostrando a miserabilidade dos trabalhadores.
Duas linguagens artísticas, distintas, mas que poderiam estar entre as consideradas como engajada. Uma situação, mais pertinente ao século XX, em que arte perdeu a sua aura na época da reprodutibilidade técnica, numa formulação clássica de Walter Benjamim, poderíamos então apontar para mais uma questão [a quarta]: em que medida o artista e sua ética podem ser desvinculados da produção na arte industrializada? Ou ainda: haveria diferenças éticas na estética da arte de autoria e/ou conceitual daquela produzida sob encomenda para um mercado anônimo?
Esta questão merece, pelo menos, duas abordagens. Num primeiro campo, localizamos a arte industrial: objetos similares a obras de artes visuais, são produzidos em larga escala e vertidos em objetos de decoração, boa parte deles, sem identificação da autoria. A indústria cultural – da literatura, cinema e televisão - em grande parte, produz obras em série e em linhas de montagem, seguindo regras rígidas, determinadas pelo produtor, em consonância, com mercado, convertendo o artista em prestador de serviços e a obra de arte em mercadoria de entretenimento.
Num segundo campo, temos a arte a serviço da propaganda e do marketing. Filmes, fotografias e textos, convertem-se em instrumentos eficazes para expressar valores e ideias, que necessariamente não correspondem a dos artistas que as produzem. Estas produções continuariam as ser arte? Ou romperiam com um suposto preceito ético de que a Arte por si, necessariamente expressa o artista e, portanto, não pode ser realizada sob encomenda ou com outros fins? Temos ainda uma outra questão [a quinta]: nos filmes e nos espetáculos de dança, teatro e música, em que medida, artistas poderiam aceitar a participação nas produções com as quais possuem divergências éticas? Os atores e músicos em muitos espetáculos são submissos à direção do músico principal – nos musicais - ou do diretor de filmes e espetáculos. Por vezes, estes se conduzem por temas que o músico ou o ator pode estar em conflito. Neste ponto, mais uma contraste ente ética e estética.

Tema 3: Uma tipologia de questões éticas em obras de arte

As obras de arte tratam de temas diversos, nos quais as questões éticas estão associadas a personagem, pelas quais o autor as críticas, as apoia ou simplesmente faz menção a existência. Mas é importante verificar que em diversas situações a obra de arte está voltada para a defesa de alguns valores e/ou padrões que pode estar em dissonância com o apreciador. Podemos constatar, pelos menos, as seguintes situações: Na primeira situação, a obra de arte pode ser expressão por defesa ou explicitação - de uma posição que poderia ser contrária à ética do apreciador.
Parêntese: Cazuza, grande poeta e mestre no manuseio das palavras, teria uma postura que poderia ser considerada por alguns de seus admiradores como calhorda. (calhorda: diz-se de ou pessoa sem valor, desprezível, ordinária, segundo o Houaiss Eletrônico) em .Faz parte do meu show.

Te pego na escola e encho a tua bola com todo o meu amor
Te levo pra festa e testo o teu sexo com ar de professor
Faço promessas malucas tão curtas quanto um sonho bom
Se eu te escondo a verdade, baby, é pra te proteger da solidão
Faz parte do meu show
Faz parte do meu show, meu amor

A letra veicula o ideário de um conquistador que utiliza de subterfúgios, para a conquista, que poderia ser considerada como reprovável, sob o ponto de vista de alguns esquemas éticos e morais.
Apreciadores da obra de Cazuza poderiam estar em desacordo ético com a mensagem desta canção. deste músico? Um outro exemplo antigo, talvez, nem seja o mais significativo . e penso que é até uma injustiça com os autores, considerando a época em que a produziram . mas, vale por sempre provocar polemicas com as feministas: .Ai que Saudades da Amélia. de Ataulfo Alves e Mário Lago.

Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade

Poderíamos listar uma porção de outras situações, em particular, as músicas sexistas do funk carioca, no samba de breque etc. Uma segunda situação: é possível apreciar a obra de arte de um autor cuja conduta poderia ser reprovada na perspectiva ética do apreciador?
Parêntese: Jorge Luis Borges em um determinado momento apoiou o golpe militar na Argentina, que produziu uma ditadura nefasta. Os leitores de Borges, que reprovavam as suas posições políticas, poderiam continuar apreciando a sua obra literária?
Pensando sobre estas situações poderíamos apontar, ainda uma outra, questão: seria possível a produção de obras de arte que tragam em si a contradição do mundo, expondo diversos lados de uma situação ética?
Parêntese: dentre as obras que lidam com a contradição, eu destacaria o filme. Faça a coisa certa. (1989) do Spike Lee. Diferente de outras obras do autor, que às vezes radicaliza nas situações da vida concreta da comunidade afro-estudinidense, ou às vezes caminha para uma postura claramente panfletária, como o caso de Malcom X. Neste filme, os personagens são apresentados em suas contradições concretas, é um filme tão explosivo que parece singelo, e até mesmo inocente, se não fosse tão duro.

Tema 4: formação ética e formação estética

Ética e estética sendo definidas como conjunto de valores - como pressupomos neste ensaio - nos remetem a questão do como estes seriam formados. Eu quero arrolar, mesmo que rapidamente, alguns temas e problematizações desta questão.
Qual a função do ambiente cultural na formação de valores? O ambiente cultural é por excelência o principal espaço modelador de valores - morais, éticos e estéticos. O ambiente cultural - composto por diferentes grupos de convívio - contêm diversos agentes formadores de valores - morais, éticos e estéticos – disputando permanentemente as mentes e sentimentos das pessoas. O convívio - com familiares, nas igrejas, nas escolas, no trabalho, nos clubes, nos locais de lazer - estabelece interlocuções polifônicas com linguagens artísticas, com modelos sociais interferindo decisivamente na formação de padrões éticos, morais e estéticos. Mas a vida num ambiente cultural não homogeneíza as pessoas, mas seguramente, cria condições para padrões sejam eles éticos ou estéticos - sejam mais aceitos do que outros. As multiplicidades de mídias contemporâneas também produzem interferências, cada vez mais significativas e decisivas – na formação de padrões estéticos, pois permitem relações mais individualizadas. Este processo seguramente reduz o poder formativo dos ambientes culturais e estabelecem novas referências e maior autonomia na formação de valores éticos e estéticos.
Qual a função do racionalismo na formação de valores? O racionalismo é, também, agente de formação de valores - morais, éticos e estéticos. O iluminismo, herdeiro da tradição helênica, defendeu com ênfase que a razão (e o racionalismo) seria o elemento fundamental da formação dos valores.
Pressupondo que os seres humanos seriam livres para a escolha consciente dos valores, e daí, portanto, o fundamento do conceito de ética e estética como valores auto-determinados. Mas, o idealismo do iluminismo não se professou plenamente. Os elementos da psique humana atuam em conjunto com a racionalidade, mobilizando sentimentos, desejos e afetos, além das marcas deixadas no aparelho psíquico pelas mais diversas experiências humanas. Assim os seres humanos não são quem realmente acreditam racionalmente - que sejam. Assim, o racionalismo tem um peso fundamental na aceitação negação de valores, porém, não são exclusivamente determinantes. Qual a medida, então, das marcas nos aparelho psíquico dos indivíduos na formação de valores? A experienciação da diversidade de situações de vida marca profundamente o aparelho psíquico das pessoas mantendo-as em situações conscientes, subconscientes e inconscientes. Esta teoria, proposta inicialmente por Freud, ajuda a explicar preferência e repulsas, fobias e desejos, recalques e condutas, inclusive as não-conscientes. Assim, mesmo que professem valores publicamente, as pessoas têm em seus respectivos inconscientes e subconscientes, outros desejos e pulsões, que podem ser reprovados tanto pela moral quando pelos códigos de ética. Assim, pessoas ambientes culturais similares tendem a ter professam gostos similares, mas os elementos da psique e da razão - permitem mudanças e rupturas, formando valores distintos e peculiares. Casos de gêmeos, que criados em situações similares, formam valores morais e estéticos - ou padrões estéticos distintos são, talvez, o exemplo mais concreto desta situação.
Arquétipos culturais produzem efeitos sobre valores? As teorias dos arquétipos - generalizada a partir da obra de Carl Jung, defendem que a cultura e a psique são influenciadas por heranças culturais inconscientes, transmitidas de geração a geração, produzindo na formação humana o reforço de diversos valores e padrões de conduta. Os arquétipos estariam, portanto, presentes na formulação dos esquemas éticos e estéticos, além da interferência direta do senso moral.
A formação de valores - morais, éticos e estéticos - teria, em algum grau, influência filogenética? As filosofias iluministas, principalmente no século XX tentaram excluir diversos tipos de determinismo genético no comportamento humano, assim como o de habilidades inatas, em particular, o conceito de dom para artes, profissões ou crimes. No entanto, a genética contemporânea tem apresentado estudos de relacionamento de comportamentos com genes, que indicariam possibilidades de herança genética, para certos procedimentos repetidos por gerações. Embora as pesquisas ainda não sejam conclusivas, mas ajudam a reforçar e disseminar crenças populares nesta perspectiva.
Estes fatores, ou ao menos alguns deles, somados a outros não arrolados neste ensaio, expõe a complexidade do processo de formação de valores. O que podemos deduzir, sem esforço, que cada ser humano constitui tecidos peculiares de valores, portanto de códigos de ética como de padrões estéticos, como resultado de diferentes e complexas interações.

Anexo: A escola pode dirigir a formação de valores e padrões estéticos. A resposta para esta questão é afirmativa. Para esta questão vou apresentar uma problematização. Toda ação escolar é antes de tudo uma interferência na formação de identidade de crianças e jovens dirigidos por um ideário da cultura adulta. A instituição escolar, segundo Hanna Arendt, é [...] instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo. [Arendt, 1992, p. 238]. A escola é o mecanismo mais forte e mais explícito de incorporação das novas gerações de nossa espécie na cultura da geração que a pariu. Foucault já disse que é notável como as escolas se parecem acentuadamente com as prisões, os quartéis e os hospícios. Todos eles instrumentos de incorporação a um padrão de normalidade.
Os processos escolares [...] constituem formas de regulação social, produzidas através de estilos privilegiados de raciocínios. Aquilo que está no currículo não é apenas informação a organização do conhecimento corporifica formas particulares de agir, sentir, falar e «ver» o mundo e o «eu». [Popkewitz, 1995, p. 175].
Esses processos implicam também em dispositivos de regulação moral, pois definem [...] qual conhecimento é legítimo e qual é ilegítimo, quais formas de conhecer são válidas e quais não o são, o que é certo e o que é errado, o que é moral e o que é imoral, o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio, quais vozes são autorizadas e quais não o são. [Silva, 1995a, p. 4].
A escola dirige a formação de identidade e, portanto, produtora de valores e padrões tanto éticos quanto estéticos. Mas para isto a pedagogia tem enfrentado diversos problemas, que poderia expressar, alguns deles, nas seguintes questões: Quais as propostas pedagógicas? Elas são poucas e ainda assim depende do voluntarismo dos professores. Qual o sentido desta formação? Geralmente é a do mundo adulto e a partir dos referencias éticos dos professores. Qual o direito dos adultos para definir qual conhecimento é legítimo e qual é ilegítimo, quais formas de conhecer são válidas e quais não o são, o que é certo e o que é errado, o que é moral e o que é imoral, o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio, quais vozes são autorizadas e quais não o são? Há um caminho? Há vários, que passam por escolas abertas e não-diretivistas. 

Referências
ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 1980.
POPKEVITZ, Thomas S. Reforma educacional: uma política sociológica. Porto alegre, Artes Médicas, 1997.
SILVA, Tomaz Tadeu. Currículo e Identidade Social: Novos Olhares. XVIII Reunião Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação. Caxambu
(MG), 1995.