Ética e estética como processos
de formação de valores
Marcos Cordiolli
A
vida da humanidade em comunidade promoveu a criação de ambientes culturais, composto
por regras, costumes, valores, hábitos, tecnologias, linguagens, rituais etc, e
neste conjunto criou-se também referenciais para as condutas sociais, por
convenção, chamado de moral. Os
indivíduos assumem perante para si ou perante grupos de convívios conjuntos específicos
de valores e padrões de conduta que denominamos de ética.
Além disso, desenvolvem padrões para produção artística e de julgamento do
considerado belo que
denominamos de estética. A moral
é, entre outras coisas, o referencial (formado por um conjunto
básico de valores e padrões de conduta) dos grupos sociais de normalidade e
inclusão. Nas diversas sociedades, nas mais distintas épocas, existiram pessoas
excluídas ou perseguidas, por se colocarem além das margens delimitadas, fora do
campo de tolerância e/ou em dissonância com os padrões de normalidades
determinados pela moral vigente no grupo.
A
ética pode ser definida como um conjunto de
valores e padrões de conduta, auto assumidos ou auto-proclamados, que
constituem auto-referencia para a vida em sociedade e que expressa formas de
ver e sentir o mundo. Há, portanto, ética individual e outra coletiva (como a
dos médicos, dos educadores, dos policiais).
Estes
valores e padrões de conduta representam juízos que julgam adequados (ou não)
os valores e padrões de conduta do grupo social (e, portanto, também moral) no
qual se está inserido. A ética significa tanto uma racionalização como um compromisso
com valores e padrões de condutos julgados corretos, belos, virtuosos e necessários,
por isso, que alguns a definem como a ciência da moral, enquanto outros a
tratam como balizadoras para as ações humanas .justas, corretas e ideais visando
à harmonia e a perfeição.
A
estética ocupa da produção
artística, ora se confundindo com a filosofia da arte, das sensações, dos
processos se ocupa da fruição e criação, por vezes também se assume com capacidade
(e direito) de julgamento pretendendo definir o belo, ou no extremo o belo
puro.
O
pressuposto tanto da ética como a estética são julgamentos
de valor que definem referenciais de certo ou
errado, bom ou mal, bem ou mau, belo ou feio.
Tema 2: Uma ética estética ou uma estética
ética
A
ética seria estética ou estética teria uma ética? Isto posto podemos enunciar a
seguinte questão [a primeira]: de que maneira a ética [como referencial de
valores] se entrecruza com a estética? Uma aproximação, talvez possa ser: a
arte sendo produto de sensações, portanto, expressa, também, os valores
daqueles ou daqueles que a produzem: alguns abertamente, outros veladamente e, há
até aqueles inconscientes (a leitura de certas obras de arte permite descobrir
elementos sobre autores, desconhecidos conscientemente por eles próprios). E
como toda obra de arte é uma linguagem, também expressa conjuntos de signos
ideológicos, por mais polifônica que possa ser. Portanto, os imperativos éticos
constituem-se, também, e mesmo que inconscientes, em imperativos estéticos. E
vice-versa. Isto nos remete a outra questão [a segunda]: uma ideologia/ideário
ética corresponderia a uma estética também ética? Jean Claude Bernadet, ao tratar
do cinema, afirma, um fuzil é sempre um fuzil: importa quem o maneja e contra
quem é manejado. Assim, os discursos e as obras são expressões destes ideários,
mesmo que não representem explicita e necessariamente posições partidárias, mas
representam a sensibilidade do autor sobre o mundo. Parêntese:
os poetas curitibanos do inicio do século XX (refiro-me explicitamente ao grupo
em torno de Dario Veloso que conheço um pouco
porque
tive a oportunidade de estudar num trabalho acadêmico) não assumiam uma posição
política explícita, mas produziram textos melancólicos, refletindo o
descontentamento com a ordem urbana e industrial. A melancolia era signo de um saudosismo,
que não se unificava as lutas anticapitalista, mas que também não se somavam ao
ufanismo modernizador.
Assim
sendo, podemos nos colocar uma outra questão [a terceira]: em que medida a arte
pode estar a serviço de uma posição ideológica decorrente da concepção ética do
artista? A história da arte apresenta inúmeros exemplos explícitos, talvez possamos
nos lembrar de Guernica de Picasso, quase um monumento de denuncia a agressão
fascista da população espanhola (mas que hoje se converteu num panfleto
pacifista).
Então
podemos nos perguntar agora: haveria um limite, uma medida, em que a arte, a serviço
de uma ideologia, poderia converter-se num panfleto/instrumento de propaganda?
Parêntese:
no Brasil, talvez, tenhamos que obrigatoriamente nos remeter aos casos de Jorge
Amado e Plínio Salgado representam expressões antagônicas no Brasil, este em
defesa do integralismo e aquele do comunismo. Esta situação pode, ainda, ser
ilustrada pela conversa de Portinari e Neruda: conta-se de quando Neruda
encontrou Portinari, aquele influenciado pelo realismo socialista, disse que
este deveria representar os trabalhadores como fortes e viris, pois seriam
portadores do futuro e do socialismo. O pintor brasileiro, segundo dizem, teria
se limitado a dizer que estes eram os trabalhadores que ele conhecia em
Brodósqui.
Parece
haver duas situações: da arte que combate o capitalismo como panfleto, corrente
esta distinta de outra que, em tese, criticaria o capitalismo mostrando a
miserabilidade dos trabalhadores.
Duas
linguagens artísticas, distintas, mas que poderiam estar entre as consideradas
como engajada. Uma situação, mais pertinente ao século XX,
em que arte perdeu a sua aura na época da reprodutibilidade técnica, numa
formulação clássica de Walter Benjamim, poderíamos então apontar para mais uma
questão [a quarta]: em que medida o artista e sua ética podem ser desvinculados
da produção na arte industrializada? Ou ainda: haveria diferenças éticas na
estética da arte de autoria e/ou conceitual daquela produzida sob encomenda
para um mercado anônimo?
Esta
questão merece, pelo menos, duas abordagens. Num primeiro campo, localizamos a arte
industrial: objetos similares a obras de artes visuais, são produzidos em larga
escala e vertidos em objetos de decoração, boa parte deles, sem identificação
da autoria. A indústria cultural – da literatura, cinema e televisão - em
grande parte, produz obras em série e em linhas de montagem, seguindo regras
rígidas, determinadas pelo produtor, em consonância, com mercado, convertendo o
artista em prestador de serviços e a obra de arte em mercadoria de
entretenimento.
Num
segundo campo, temos a arte a serviço da propaganda e do marketing. Filmes,
fotografias e textos, convertem-se em instrumentos eficazes para expressar
valores e ideias, que necessariamente não correspondem a dos artistas que as
produzem. Estas produções continuariam as ser arte? Ou romperiam com um suposto
preceito ético de que a Arte por si, necessariamente expressa o artista e,
portanto, não pode ser realizada sob encomenda ou com outros fins? Temos ainda
uma outra questão [a quinta]: nos filmes e nos espetáculos de dança, teatro e música,
em que medida, artistas poderiam aceitar a participação nas produções com as
quais possuem divergências éticas? Os atores e músicos em muitos espetáculos são
submissos à direção do músico principal – nos musicais - ou do diretor de
filmes e espetáculos. Por vezes, estes se conduzem por temas que o músico ou o
ator pode estar em conflito. Neste ponto, mais uma contraste ente ética e
estética.
Tema 3: Uma tipologia de questões éticas
em obras de arte
As
obras de arte tratam de temas diversos, nos quais as questões éticas estão
associadas a personagem, pelas quais o autor as críticas, as apoia ou
simplesmente faz menção a existência. Mas é importante verificar que em
diversas situações a obra de arte está voltada para a defesa de alguns valores
e/ou padrões que pode estar em dissonância com o apreciador. Podemos constatar,
pelos menos, as seguintes situações: Na primeira situação, a obra de arte pode ser
expressão por defesa ou explicitação - de uma posição que poderia ser contrária
à ética do apreciador.
Parêntese:
Cazuza, grande poeta e mestre no manuseio das palavras, teria uma postura que poderia
ser considerada por alguns de seus admiradores como calhorda. (calhorda: diz-se
de ou pessoa sem valor, desprezível, ordinária, segundo o Houaiss Eletrônico)
em .Faz parte do meu show.
Te pego na escola e encho
a tua bola com todo o meu amor
Te levo pra festa e testo
o teu sexo com ar de professor
Faço promessas malucas
tão curtas quanto um sonho bom
Se eu te escondo a
verdade, baby, é pra te proteger da solidão
Faz parte do meu show
Faz parte do meu show,
meu amor
A
letra veicula o ideário de um conquistador que utiliza de subterfúgios, para a
conquista, que poderia ser considerada como reprovável, sob o ponto de vista de
alguns esquemas éticos e morais.
Apreciadores
da obra de Cazuza poderiam estar em desacordo ético com a mensagem desta
canção. deste músico? Um outro exemplo antigo, talvez, nem seja o mais
significativo . e penso que é até uma injustiça com os autores, considerando a
época em que a produziram . mas, vale por sempre provocar polemicas com as
feministas: .Ai que Saudades da Amélia. de Ataulfo Alves e Mário Lago.
Amélia
não tinha a menor vaidade
Amélia
é que era mulher de verdade
Poderíamos
listar uma porção de outras situações, em particular, as músicas sexistas do
funk carioca, no samba de breque etc. Uma segunda situação: é possível apreciar
a obra de arte de um autor cuja conduta poderia ser reprovada na perspectiva
ética do apreciador?
Parêntese:
Jorge Luis Borges em um determinado momento apoiou o golpe militar na Argentina,
que produziu uma ditadura nefasta. Os leitores de Borges, que reprovavam as
suas posições políticas, poderiam continuar apreciando a sua obra literária?
Pensando
sobre estas situações poderíamos apontar, ainda uma outra, questão: seria
possível a produção de obras de arte que tragam em si a contradição do mundo,
expondo diversos lados de uma situação ética?
Parêntese:
dentre as obras que lidam com a contradição, eu destacaria o filme. Faça a
coisa certa. (1989) do Spike Lee. Diferente de outras obras do autor, que às
vezes radicaliza nas situações da vida concreta da comunidade
afro-estudinidense, ou às vezes caminha para uma postura claramente panfletária,
como o caso de Malcom X. Neste filme, os personagens são apresentados em suas contradições
concretas, é um filme tão explosivo que parece singelo, e até mesmo inocente,
se não fosse tão duro.
Tema 4: formação ética e formação
estética
Ética
e estética sendo definidas como conjunto de valores - como pressupomos neste ensaio
- nos remetem a questão do como estes seriam formados. Eu quero arrolar, mesmo
que rapidamente, alguns temas e problematizações desta questão.
Qual
a função do ambiente cultural na formação de valores? O ambiente cultural é por
excelência o principal espaço modelador de valores - morais, éticos e
estéticos. O ambiente cultural - composto por diferentes grupos de convívio - contêm
diversos agentes formadores de valores - morais, éticos e estéticos –
disputando permanentemente as mentes e sentimentos das pessoas. O convívio -
com familiares, nas igrejas, nas escolas, no trabalho, nos clubes, nos locais
de lazer - estabelece interlocuções polifônicas com linguagens artísticas, com
modelos sociais interferindo decisivamente na formação de padrões éticos,
morais e estéticos. Mas a vida num ambiente cultural não homogeneíza as
pessoas, mas seguramente, cria condições para padrões sejam eles éticos ou
estéticos - sejam mais aceitos do que outros. As multiplicidades de mídias contemporâneas
também produzem interferências, cada vez mais significativas e decisivas – na formação
de padrões estéticos, pois permitem relações mais individualizadas. Este
processo seguramente reduz o poder formativo dos ambientes culturais e
estabelecem novas referências e maior autonomia na formação de valores éticos e
estéticos.
Qual
a função do racionalismo na formação de valores? O racionalismo é, também,
agente de formação de valores - morais, éticos e estéticos. O iluminismo,
herdeiro da tradição helênica, defendeu com ênfase que a razão (e o
racionalismo) seria o elemento fundamental da
formação dos valores.
Pressupondo
que os seres humanos seriam livres para a escolha consciente dos valores, e
daí, portanto, o fundamento do conceito de ética e estética como valores
auto-determinados. Mas, o idealismo do iluminismo não se professou plenamente.
Os elementos da psique humana atuam em conjunto com a racionalidade,
mobilizando sentimentos, desejos e afetos, além das marcas deixadas no aparelho
psíquico pelas mais diversas experiências humanas. Assim os seres humanos não
são quem realmente acreditam racionalmente - que sejam. Assim, o racionalismo
tem um peso fundamental na aceitação negação de valores, porém, não são exclusivamente
determinantes. Qual a medida, então, das marcas nos aparelho psíquico dos indivíduos
na formação de valores? A experienciação da diversidade de situações de vida
marca profundamente o aparelho psíquico das pessoas mantendo-as em situações conscientes,
subconscientes e inconscientes. Esta teoria, proposta inicialmente por Freud,
ajuda a explicar preferência e repulsas, fobias e desejos, recalques e
condutas, inclusive as não-conscientes. Assim, mesmo que professem valores
publicamente, as pessoas têm em seus respectivos inconscientes e
subconscientes, outros desejos e pulsões, que podem ser reprovados tanto pela
moral quando pelos códigos de ética. Assim, pessoas ambientes culturais
similares tendem a ter professam gostos similares, mas os elementos da psique e
da razão - permitem mudanças e rupturas, formando valores distintos e
peculiares. Casos de gêmeos, que criados em situações similares, formam valores
morais e estéticos - ou padrões estéticos distintos são, talvez, o exemplo mais
concreto desta situação.
Arquétipos
culturais produzem efeitos sobre valores? As teorias dos arquétipos -
generalizada a partir da obra de Carl Jung, defendem que a cultura e a psique
são influenciadas por heranças culturais inconscientes, transmitidas de geração
a geração, produzindo na formação humana o reforço de diversos valores e padrões
de conduta. Os arquétipos estariam, portanto, presentes na formulação dos
esquemas éticos e estéticos, além da interferência direta do senso moral.
A
formação de valores - morais, éticos e estéticos - teria, em algum grau,
influência filogenética? As filosofias iluministas, principalmente no século XX
tentaram excluir diversos tipos de determinismo genético no comportamento
humano, assim como o de habilidades inatas, em particular, o conceito de dom para
artes, profissões ou crimes. No entanto, a genética contemporânea tem
apresentado estudos de relacionamento de comportamentos com genes, que
indicariam possibilidades de herança genética, para certos procedimentos
repetidos por gerações. Embora as pesquisas ainda não sejam conclusivas, mas
ajudam a reforçar e disseminar crenças populares nesta perspectiva.
Estes
fatores, ou ao menos alguns deles, somados a outros não arrolados neste ensaio,
expõe a complexidade do processo de formação de valores. O que podemos deduzir,
sem esforço, que cada ser humano constitui tecidos peculiares de valores, portanto
de códigos de ética como de padrões estéticos, como resultado de diferentes e
complexas interações.
Anexo:
A escola pode dirigir a formação de valores e padrões estéticos. A
resposta para esta questão é afirmativa. Para esta questão vou apresentar uma problematização.
Toda ação escolar é antes de tudo uma interferência na formação de identidade
de crianças e jovens dirigidos por um ideário da cultura adulta. A instituição
escolar, segundo Hanna Arendt, é [...] instituição que interpomos entre o
domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer que seja possível a
transição, de alguma forma, da família para o mundo. [Arendt, 1992, p. 238]. A escola
é o mecanismo mais forte e mais explícito de incorporação das novas gerações de
nossa espécie na cultura da geração que a pariu. Foucault já disse que é
notável como as escolas se parecem acentuadamente com as prisões, os quartéis e
os hospícios. Todos eles instrumentos de incorporação a um padrão de
normalidade.
Os
processos escolares [...] constituem formas de regulação social, produzidas
através de estilos privilegiados de raciocínios. Aquilo que está no currículo
não é apenas informação a organização do conhecimento corporifica formas particulares
de agir, sentir, falar e «ver» o mundo e o «eu». [Popkewitz, 1995, p. 175].
Esses
processos implicam também em dispositivos de regulação moral, pois definem [...]
qual conhecimento é legítimo e qual é ilegítimo, quais formas de conhecer são
válidas e quais não o são, o que é certo e o que é errado, o que é moral e o
que é imoral, o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio, quais
vozes são autorizadas e quais não o são. [Silva, 1995a, p. 4].
A
escola dirige a formação de identidade e, portanto, produtora de valores e
padrões tanto éticos quanto estéticos. Mas para isto a pedagogia tem enfrentado
diversos problemas, que poderia expressar, alguns deles, nas seguintes
questões: Quais as propostas pedagógicas? Elas são poucas e ainda assim depende
do voluntarismo dos professores. Qual o sentido desta formação? Geralmente é a
do mundo adulto e a partir dos referencias éticos dos professores. Qual o
direito dos adultos para definir qual conhecimento é legítimo e qual é
ilegítimo, quais formas de conhecer são válidas e quais não o são, o que é
certo e o que é errado, o que é moral e o que é imoral, o que é bom e o que é
mau, o que é belo e o que é feio, quais vozes são autorizadas e quais não o são?
Há um caminho? Há vários, que passam por escolas abertas e não-diretivistas.
Referências
ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. 3. ed. São Paulo:
Perspectiva, 1992.
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense,
1980.
POPKEVITZ,
Thomas S. Reforma educacional: uma política sociológica. Porto alegre,
Artes Médicas, 1997.
SILVA, Tomaz Tadeu.
Currículo e Identidade Social: Novos Olhares. XVIII Reunião Anual da Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação. Caxambu
(MG),
1995.