sábado, 18 de fevereiro de 2017

VALOR, ESCOLHA E LIBERDADE

VALOR, ESCOLHA E LIBERDADE

VALOR, ESCOLHA E LIBERDADE

Em sua obra O ser e o nada, o filósofo Jean-Paul Sartre, assim como Nietzsche, discute a universalidade do valor. Ele fala em “ser do valor”, que seria uma produção da consciência. Sartre trabalha com o método fenomenológico, criado pelo filósofo e matemático austríaco Edmund Husserl, que tem como um dos conceitos centrais o de consciência.
Para Husserl e Sartre, a consciência é a realidade do ser humano, único ser consciente no mundo. Segundo a fenomenologia, a consciência não possui uma interioridade, um ser, uma identidade; a consciência é vazia de conteúdo. Ela se caracteriza por ser um ato: o ser consciente é aquele que observa o mundo e, ao vê-lo, percebe que está vendo. Um exemplo simples: enquanto você observa uma árvore, na mesma experiência percebe que você não é a árvore observada. Você é alguém que tem consciência da existência da árvore. Mas, se você se coloca então a pensar sobre si mesmo, tentando saber o que você é, não encontra nenhum conteúdo. A consciência é, então, o ato de observar a árvore e, nessa observação, perceber a si mesmoPara Sartre, o humano é um ser consciente, e o valor é a forma de ser da consciência. Em sua concepção, valor e vontade têm a mesma “estrutura de ser”. Ao afirmar isso, ele está se referindo à noção de falta, que acredita ser o elemento comum àqueles dois conceitos. 
Segundo o filósofo, nós atribuímos valor àquilo que nos falta, da mesma forma que temos vontade daquilo que não possuímos, pois se temos essa coisa não a desejamos. Um exemplo: em um dia de grande calor, nos falta o frescor e desejamos o frio; um tempo mais fresco constitui valor para nós. Esse exemplo simples, do tempo, se estende para todos os outros campos. Essa ideia de falta e de desejo, como uma necessidade a ser suprida e um mecanismo da ação humana, foi evidenciada na canção de Zeca Baleiro, reproduzida a seguir.


É nesse sentido, presente na canção de Zeca Baleiro, que Sartre afirma ter o valor a mesma estrutura da vontade: o valor é uma falta, uma ausência, que faz com que atuemos para preenchê-la, para anulá-la. É assim, como quando mobilizamos ação e pensamento em busca da realização de um desejo, que a consciência produz novos valores.
Só que, como a falta constitui a própria estrutura da consciência, tão logo agimos e conquistamos um valor, preenchendo a ausência ou suprindo a falta inicial, a consciência quer se manifestar de outra forma, por meio de outros valores. O vazio retorna e novamente nos lançamos à busca, para preenchê-lo, como fazemos diante de desejos ainda não saciados, que se renovam e reascendem, assim que o sentimento de satisfação se torna frio e evanescente. Sendo essa a própria fisionomia do ser da consciência humana, esse processo constante de escolha consiste em uma necessidade.
Segundo Sartre, é por meio desse processo que um ser transcende seu próprio ser, indo além de si mesmo. Um pintor, por exemplo, depois de uma longa busca, conseguiu criar uma técnica mediante a qual se tornou reconhecido por produzir belíssimos quadros. Ele poderia permanecer neste estado, mantendo-se convicto com relação à concepção técnica que orienta sua produção artística. Porém, tão logo conquistado o desafio inicial que o consagrara no estilo ao qual pertence, ele deseja ir além. Mais experimentos, diferentes temas e muitos estudos são algumas medidas práticas e teóricas que o pintor mobiliza para a realização dessa nova busca: a superação da técnica anterior.Ora, esse processo é na verdade a superação de si mesmo. É o que Sartre chama transcendência. Ela só é possível por intermédio do valor, que, no exemplo do pintor, é a técnica artística. Ao possibilitar a manifestação da vontade, a consciência lhe toma como seu motor. O valor impulsiona constantemente o indivíduo à ação para superar-se na busca de novos valores. Se eles mudam, a consciência muda também; modifica-se o seu próprio ser, modificando também o ser consciente, isto é, a pessoa, que pensa, age e se expressa mediante os valores. Eis porque são eles o motor da ação humana.
Uma vez que o valor não é algo dado, algo absoluto com o que nos defrontamos, mas um produto da consciência, percebe-se que é impossível, na perspectiva de Sartre, uma moral que fundamente normas e leis em valores absolutos e abstratos, como a moral cristã, por exemplo. Baseada no decálogo de Moisés, ela afirma valores desse gênero quando determina: “não matarás”. Ora, afirma-se assim a vida como um valor absoluto. No entanto, ele é apresentado de forma abstrata, quando diz simplesmente “não matarás”, sem fornecer especificações concretas e precisas sobre as possíveis circunstâncias. Um exemplo: se estou sendo mortalmente atacado por alguém e, para me defender, mato aquele que me agride, estou, ainda assim, cometendo um pecado por infringir essa regra moral geral? Como sabemos, os mandamentos não preveem situações como essa.
Se tomarmos, por outro lado, a perspectiva apontada por Sartre, só podemos falar em uma moral baseada na ação individual, sem regras gerais e válidas para todos. Isso quer dizer que cada ação humana só pode ser julgada depois de realizada e avaliada caso a caso. Retomando o exemplo anterior, não seria possível enunciar uma regra geral como “não matarás”; o valor da vida é julgado e avaliado em cada situação, podendo sofrer variações. Dizendo de outro modo, em lugar da universalidade, Sartre afirma a “relatividade” da moral: o valor de um ato é sempre relativo à situação em que ele é praticado.

CONSCIÊNCIA E CONHECIMENTO
A inovação introduzida por Sartre é o fato de dizer que o valor não é um ser em si mesmo, mas uma “estrutura da consciência”, ou seja, produzimos valores porque somos seres conscientes. Da mesma forma, produzimos conhecimentos porque somos seres conscientes. Mas a relação consciência-valor é diferente da relação consciência-conhecimento.  O conhecimento não é uma falta; ao contrário, é a presença de um objeto que move a consciência na produção do saber. Já o valor, sendo uma falta, é o motor da produção da consciência, aquilo que nos faz agir, buscando o preenchimento dessa falta.
Toda consciência é consciência reflexiva, isto é, pressupõe aquele movimento de aperceber-se a si mesma no ato da percepção, como vimos no exemplo da árvore. A consciência reflete, volta-se sobre si mesma, tomando-se objeto do pensamento. Na produção de conhecimento, a consciência atua de forma reflexiva.
Mas nem toda consciência é moral, isto é, julga e avalia ações de pensamentos morais. Os valores podem, pois, ser ou não objeto da atenção de minha consciência, mas nenhuma consciência será “moral” pelo simples fato de ser consciência.
Sendo parte da estrutura da consciência, os valores nunca poderão ser absolutos e universais, mas serão sempre criações particulares, individuais. Sartre diz que é preciso que abandonemos aquele “espírito de seriedade” (usando uma expressão de Nietzsche) que faz com que tomemos os valores como dados, absolutos, como bons em si mesmos e,
portanto, geradores do bem. Uma moral baseada nesses valores é uma moral de “má-fé”, pois estamos recebendo uma orientação externa, muitas vezes imposta a nós. Se nelas nos fiamos sem reflexão prévia, corremos o risco de estarmos enganando a nós mesmos.
A “má-fé” é o autoengano, é agir segundo uma imagem abstrata que recebemos de fora, dos outros, e não segundo a afirmação de nosso próprio ser, de nossa própria consciência.
Os valores não são abstratos, transcendentes: nós próprios inventamos nossos valores, e isso quer dizer que somos nós mesmos que damos sentido às nossas vidas. Esse sentido por nós escolhido é nosso valor: a falta que procuraremos completar para a nossa realização, nos vários momentos de nossa existência.
O único valor para o ser humano é, então, a realidade humana, pois tudo o que fazemos é a construção de nossa realidade, de nossa vida. Sem o mundo, sem o ser humano, nunca haveria valor: eis a conclusão de Sartre. As consequências políticas são bastante claras: o “valor universal” é uma abstração irreal usada com a finalidade de manipular as consciências e a realidade humana.
Ao longo da história humana, legisladores morais de todos os tipos aviltaram a liberdade humana em nome de um poder absoluto e da exploração. Sua ação sempre foi facilitada pela angústia existencial que sentimos frente ao nada de nosso ser e, para fugir a tal angústia, aderimos – de “má-fé” – a qualquer identidade externa que nos seja oferecida pelos moralistas de plantão. Em nosso íntimo, porém, sabemos que essa tranquilidade que conseguimos com a identificação social é falsa, e é a coragem de abandoná-la que fundamenta as revoltas políticas que visam a resgatar a dignidade humana e sua autonomia.

"CONDENADO A SER LIVRE"
Para Sartre, o ser humano é livre, e a liberdade consiste no ato da escolha. Nós sempre escolhemos, afirma o filósofo, e não há como evitarmos. Quando dizemos que não há opções, na verdade estamos dizendo que não gostamos ou não queremos as que estão disponíveis a nós, pois elas sempre existem.
Essa situação evoca uma experiência comum a nós. Imagine: nem que seja o “menos ruim”, é preciso tomar o remédio, quando se está seriamente doente; seja por via injetável, seja por via oral, mesmo que nenhuma das duas opções lhe seja prazerosa. Diante disso, podemos ainda escolher não o tomar. Porém, nesse caso devemos estar cientes de que consequências relacionadas a esta opção possivelmente recairão sobre nós. Quando fazemos uma escolha entre uma via e outra, nós julgamos e avaliamos com base nos valores, que nos servem de referência e critério. 
Se não os temos, escolhemos algo para preencher essa ausência, que, conforme vimos, não pode ser preenchida definitivamente por tratar-se da constituição própria da consciência. O valor como seu motor impulsiona o ser consciente a sempre agir, isto é, a escolher sempre entre um valor e outro, uma via e outra, e a executar uma ação. É nesse sentido que Sartre afirma que o ser humano está “condenado a ser livre”. Desde que nascemos até nossa morte, nossa vida consiste irremediavelmente em agir. Essa expressão ressalta a condição paradoxal do ser humano: ao mesmo tempo que, como irremediáveis agentes, estamos condenados a agir, é uma necessidade existencial, somos
livres para escolher e arcar com a responsabilidade de nossas escolhas, feitas livremente, isto é, feita apenas por nós, mediante opções sempre existentes.
Em síntese, podemos dizer que só avaliamos e valoramos as coisas, as pessoas, os atos, as situações porque somos livres; mas, ao mesmo tempo, somos livres porque avaliamos e valoramos, escolhendo e agindo. Valor, escolha e liberdade como ato implicam responsabilidade. Se cada um de nós escolhe segundo seus próprios valores e, com base neles, age, é completamente responsável por suas escolhas e suas ações, e também pelos resultados e pelas consequências dessas ações.

RETOMANDO A QUESTÃO

Após esse percurso por diferentes perspectivas na história da filosofia, podemos retomar a pergunta do início deste capítulo: com base em que valores nós agimos? Duas posições são centrais: uma que afirma a universalidade dos valores e outra que afirma sua historicidade. Se a primeira se apresenta de forma mais rígida, a segunda parece mais flexível. Se na primeira constatamos algumas dificuldades de sustentação, como no caso do preceito “não matarás”, citado anteriormente, na segunda também é possível identificar problemas e limitações. Se todos os valores são criações da consciência ou invenções históricas, são igualmente legítimos. Em nome de que valores, por exemplo, a decisão das mulheres muçulmanas por usar burca e aceitar uma posição subordinada na sociedade em que vivem pode ser condenada? Ora, numa situação como essa, como julgar o que é certo ou errado? Em qual valor devemos nos fiar? Em quais critérios podemos nos basear para fazer a escolher correta? Questões e problemas assim, vistos neste capítulo, instigaram os
filósofos de todos os tempos a pensar em respostas e soluções filosóficas.
A esse campo filosófico, próprio às reflexões sobre o agir, deu-se o nome de ética. E é exatamente disso que continuaremos a tratar nos próximos capítulos.